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Baseados em fatos reais... menos as partes inventadas

  • Foto do escritor: Marcelo Pedrozo
    Marcelo Pedrozo
  • 8 de abr. de 2022
  • 8 min de leitura

Crítica a filmes como King Richard (2021) e Being the Ricardos (2021) que, ao não se aterem aos fatos reais nos quais são baseados, acabam distorcendo a reputação de pessoas reais, e utilizando como contraponto a abordagem mais adequada de Tick, Tick... Boom! (2021).

Sim, sim, todo mundo sabe qual foi o grande assunto do Oscar 2022. O tapa que o Will Smith deu no Chris Rock depois que ele ofendeu a esposa dele, Jada Smith, logo antes de ganhar o prêmio de Melhor Ator por seu papel em King Richard. Não vou me aprofundar nesse assunto – nas últimas semanas, a internet já se aprofundou o suficiente –, mas quero destacar um trecho do discurso que ele fez ao receber a estatueta, no qual também explicou seus motivos e pediu desculpas pelo que fez, fazendo um paralelo com seu papel no filme:


“Richard Williams foi um feroz defensor de sua família.”


No filme, Smith interpretou Richard Williams, o pai das tenistas Venus e Serena Williams, em sua trajetória para se certificar de que as filhas tivessem um grande futuro e se tornassem estrelas do esporte. E, assim como exemplificado pelo trecho do discurso de Smith, o longa-metragem é uma grande homenagem ao pai das irmãs, mesmo que uma homenagem crítica que mostre seus erros junto com os acertos. De qualquer maneira, King Richard mostra Richard Williams como uma pessoa que fez de tudo pela família.


Mas que família?


O longa não dá muito destaque a isso, mas em uma cena é mencionado que Richard tinha outros filhos além de Serena, Venus e das outras irmãs que acompanhamos. Na vida real, Richard Williams abandonou sua família anterior, incluindo uma filha de oito anos, para se casar de novo e ter essa nova família mostrada no filme, nunca tendo dado ajuda financeira aos outros filhos.

Não parece irônico, portanto, que exista um longa-metragem contando sua história e, essencialmente, sendo uma homenagem a ele como pai? Uma homenagem a esse pai que... abandonou boa parte dos filhos que teve?


King Richard é um bom filme, pelo menos na minha opinião, e eu gostei bastante de assisti-lo. Mas quando fui atrás de discussões sobre ele na internet, a descoberta da real história de Richard Williams mudou a minha visão desse filme para sempre. Porque eu posso não deixar de gostar dele, posso reassisti-lo e ainda me divertir e achar um bom longa, mas nunca vou me esquecer de que é um filme fazendo uma homenagem a um pai que não merecia homenagem alguma.


Uma situação parecida aconteceu com outro filme indicado em algumas categorias do Oscar: Being the Ricardos. Esse longa narra uma semana da produção da série I Love Lucy, mostrando os problemas no casamento dos astros Lucille Ball e Desi Arnaz, a acusação de que a atriz era comunista em pleno macarthismo, sua gravidez em uma época em que personagens grávidas eram proibidas na televisão, entre outras situações que atrapalhavam a produção de um episódio da série.


O filme não foi exatamente muito bem recebido – inclusive, as três indicações que recebeu ao Oscar foram bastante questionadas na internet –, mas eu particularmente também gostei, principalmente de dois elementos: o primeiro foi de acompanhar a produção de uma série, os bastidores de uma sitcom, já que o longa passeia por várias etapas desse processo, desde a elaboração das sinopses e diálogos até os ensaios e a gravação com a presença de plateia.

O segundo aspecto foi a exploração dos dilemas internos de Lucille Ball (spoilers). Na história apresentada pelo longa, seu casamento com Desi já era conturbado havia alguns anos, com as carreiras dos dois atrapalhando sua relação, o que frustrava Lucy, que desde sempre procurara um lugar para chamar de lar. Assim, quando foi convidada para levar uma série que fazia no rádio para a televisão, Lucy fez uma nova proposta: a criação de um novo seriado, em que Desi interpretaria seu marido. Vários aspectos dificultaram esse processo, já que os canais de televisão tinham medo de mostrar uma mulher branca casada com um homem latino em uma época ainda mais preconceituosa do que os dias de hoje. Mesmo assim, Lucy insistiu e acabou conseguindo o que queria: estrelar em uma série com uma temática familiar ao lado do marido, na qual ela podia sentir que seu casamento não era um desastre e que o lar que ela procurava existia.


Assim, quando os problemas da semana narrada no filme acontecem, Lucy tenta consertar tudo o que havia de errado na produção ao mesmo tempo em que consertava seu casamento, pois ambos eram, na verdade, a mesma coisa para ela. Isso é mostrado principalmente quando Lucy está tão preocupada com a qualidade do novo episódio que chama dois atores do elenco para ensaiar novamente, durante a madrugada, uma cena que ela achava que poderia ser melhor.


Além disso, Lucy estava implicando com uma fala do personagem de Desi, porque ela achava que não combinava com ele e fazia o personagem pareceu burro. Ela então brigou com o diretor e os roteiristas para que gravassem uma versão alternativa da sequência concebida por ela, que faria mais sentido. Quando, porém, tudo parecia resolvido – a acusação de comunismo descartada, a gravidez na série aceita pelo canal –, logo antes de a gravação do episódio começar, Lucy questiona Desi sobre o batom que havia achado em seu lenço no começo da semana. E Desi finalmente acaba admitindo que a havia traído.

A gravação então começa e Lucy encena a versão da cena feita por ela, na qual o personagem de Desi entra e fala seu tradicional “Lucy, cheguei” (“Lucy, I'm home”). Mas é aí que Lucy fica paralisada pela fala e se atrapalha na gravação. Quando a gravação recomeça, Lucy não insiste mais para que gravem sua versão, e acaba aceitando o uso da cena original concebida pelos roteiristas. Algumas interpretações foram feitas para entender suas motivações, mas uma delas é a de que a tradicional fala do marido chegando em casa na série, logo após a descoberta da traição na vida real, a havia feito perceber enfim que o lar falso construído por ela no seriado não era verdadeiro: a ilusão havia se quebrado. Então, percebendo provavelmente que o casamento estava quebrado, ela também não se importou em consertar a série, pois eles eram a mesma coisa para ela.


Eu, pessoalmente, não conhecendo a história real dos atores de I Love Lucy, achei a construção da personagem genial, essa ilusão que ela tinha de que a série representava a vida perfeita que ela tanto sonhou. Mas a recepção não muito boa do filme se deveu, principalmente, à falta de fidelidade dele com a vida real. Não apenas vários eventos de diversas épocas diferentes foram condensados em uma semana para que o filme ficasse mais interessante, como as motivações da própria Lucille Ball foram, de certa forma, simplificadas.


Se no filme a maior razão para que ela aceitasse a série era salvar seu casamento com Desi e criar essa ilusão, na vida real, por mais que aquilo provavelmente também estivesse ali, era inegável sua paixão pelo seriado em si para além disso, ela também apreciava o trabalho pelo o que ele era. Esse amor, porém, fica em segundo plano em Being the Ricardos, que foca apenas na associação que Lucy faz do casamento com a série.


O problema é que quem assistir ao filme e não tiver o conhecimento da história real de Lucille Ball e de Richard Williams – como foi o meu caso com ambos os filmes – vai acabar achando que suas vidas foram exatamente como as descritas nos longas, e isso é preocupante porque distorce quem eles verdadeiramente foram e substituem a maneira como eles serão lembrados no imaginário popular. Quem conhecer a história de Richard por King Richard vai admirar a paternidade de um cara que abandonou vários dos filhos, e quem conhecer a história de Lucille por Being the Ricardos vai achar que ela não se importava com a série que fazia para além do salvamento de sua relação com Desi.

Então, eu posso adorar os dois filmes, mas não nego que eles são prejudiciais de certa forma, já que representam pessoas reais de maneira que não é bem verdadeira e que confunde a percepção que temos deles. Quem está assistindo, por mais que saiba que é um filme baseado em fatos, vai imaginar que, de maneira geral, tudo que é mostrado aconteceu de verdade, então esse telespectador vai ficar com uma imagem dessas pessoas na cabeça que não é exatamente a maneira como eles eram de verdade.


Ainda mais que Being the Ricardos tem literalmente cenas em que atores interpretam versões mais velhas dos roteiristas e produtores de I Love Lucy conversando com a câmera, com se o filme fosse um documentário. Mas não é, são apenas atores dando entrevistas roteirizadas em um documentário falso, só que muita gente assistindo ao filme pode pensar que são os roteiristas e produtores reais, o que dá ainda mais credibilidade ao que é mostrado no filme e que não é 100% real. Eu mesmo acreditei que eram as pessoas de verdade.


De qualquer maneira, meu ponto é: imagina alguém fazer um filme sobre você que simplifique uma ação sua e esconda uma das motivações para você fazer tal coisa? E que por causa disso, muitas pessoas passem a olhar para sua memória como se você tivesse sido uma pessoa que não foi?


Fazer filmes baseados em pessoas reais é sempre uma tarefa complicada e que merece muita atenção. E mesmo não deixando de gostar desses dois longas por causa disso, eu nunca vou revê-los da mesma maneira. Mesmo particularmente achando genial a maneira como o filme trata a personagem Lucille Ball, eu nunca vou deixar de pensar que a maneira como a personagem Lucille Ball é retratada no filme distorce a imagem da verdadeira Lucille Ball.


E algo assim acontece sempre que fazem filmes baseados em fatos. Com Bohemian Rhapsody mesmo, muita gente reclamou bastante da maneira como o filme mudou aspectos importantes da vida do Freddy Mercury e da banda Queen no geral.

Para finalizar, quero apresentar outra obra que lida com esse problema melhor do que as já mencionadas, embora não esteja totalmente livre dele: Tick, Tick... Boom!. Sim, aquele novo filme da Netflix com o Andrew Garfield, e um dos meus filmes favoritos de todos os tempos.


Tick, Tick... Boom! é um musical semi-autobiográfico de Jonathan Larson, em que ele narrava uma parte de sua vida mas de maneira deliberadamente estilizada. Não apenas músicas foram adicionadas em momentos onde, obviamente, Larson não saiu cantando e dançando na rua, mas outros momentos foram mudados e adaptados. Vários eventos também parecem ter sido condensados, assim como em Being the Ricardos, como os personagens secundários da história, que, embora sejam baseados em pessoas reais, têm seus nomes trocados, e boa parte de sua história difira do que realmente aconteceu.


O tom mais estilizado do musical – tanto de suas versões no teatro quando do filme de 2021 – contribui para que não o levemos tanto a sério, o que inclui o próprio fato de ele ser um musical, como também uma fala da personagem Susan no longa-metragem (no qual ela também serve como narradora no começo e no final): “Tudo o que você está prestes a ver é verdade... Exceto as partes que Jonathan inventou”.

Não sei se uma fala parecida com essa existia nas versões no teatro, mas sua presença no filme deixa claro para o público que a história não é 100% fiel aos acontecimentos reais e que eles são expandidos, condensados ou alterados para a obra. Embora isso não impeça pessoas de acreditarem no que estão vendo, essa proposta acaba servindo para contornar o problema. O filme admite que sim, a história é baseada em fatos, mas não é 100% fiel a eles. Então, ele acaba sendo menos prejudicial ao legado de Jonathan Larson do que King Richard e Being the Ricardos aos legados de Richard Williams e Lucille Ball. Sem contar que, ao apenas se basear em pessoas reais para criar os personagens secundários, o musical evita que essas figuras sejam lembradas apenas por suas representações ali, não distorcendo, portanto, seu legado.


Acho que esse problema nunca vai ser erradicado completamente, mas se obras como essas pelo menos fossem mais abertas ao fato de que estão, sim, mudando os eventos, como Tick, Tick... Boom! fez, poderíamos gostar delas como ficção e, ao mesmo tempo, entender que nem tudo ali é 100% verdade e que as pessoas reais ali representadas não eram, necessariamente, daquele jeito.


(E mesmo que não sejam tão abertas quanto Tick, Tick... Boom!, podiam pelo menos não enganar as pessoas com um documentário falso, como Being the Ricardos inventou de fazer. De quem foi essa ideia?)

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