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Dragões de Éter: a relação entre religião e ficção (parte 2)

  • Foto do escritor: Marcelo Pedrozo
    Marcelo Pedrozo
  • 31 de jul. de 2022
  • 8 min de leitura

Análise do que a série de livros Dragões de Éter (2007-2020) fala sobre religião e sobre ficção ao misturar os dois conceitos.

Na primeira parte deste texto, eu falei sobre como o universo de Dragões de Éter faz uma associação muito interessante e digna de ser estudada entre religião e ficção. Mas, no final, eu falei também que, ao mesmo tempo em que trazem tudo isso, os livros também trazem várias coisas bem problemáticas; e a verdade é que isso também é digno de ser analisado pela ótica proposta pela série.


Publicados em 2007, 2009 e 2010, os três primeiros livros contêm diversas microagressões racistas, além de todo um subtexto sexista, entre outras problemáticas. O quarto livro, tendo saído em 2020, melhorou bastante nesse aspecto, subvertendo as ideias sexistas presentes principalmente no arco do personagem João, além de parar com as microagressões, ao menos até onde eu pude perceber. Só que, ao mesmo tempo, o livro também trouxe um personagem que não deixa claro se é uma representatividade transgênero feita de maneira transfóbica ou se é um contexto feminista mal colocado, então tem isso...


De qualquer maneira, eu trago aqui essas problemáticas porque elas estão presentes nas falas do narrador, não apenas nas dos personagens. O narrador, nesses livros, fala com o leitor, em um tipo de humor semelhante ao utilizado em A Series of Unfortunate Events (Desventuras em Série). Ele é basicamente mais um personagem, e no caso, é mesmo, porque o narrador é assumidamente o semideus Criador. Então, Ele fala dos personagens da perspectiva de quem os criou, mas de uma perspectiva que não é imparcial e objetiva, e sim uma que contém a visão do autor e comentários dele sobre cada situação.

Comentários como esses:

– Não, nós devemos esperar todos que estão marchando para o nosso lado – retrucara o gordo coronel Athos Baxter, o único com patente mais alta do que a capitã em questão. [...] O gênio arrogante e o ego inflado, porém, do antigo mosqueteiro o tornavam uma pessoa simplesmente insuportável de se conviver, e os soldados, quando o obedeciam, o faziam por mera obrigação militar. [...] Athos Baxter, obviamente, babou como um cão raivoso com a decisão.

Em que o Criador deixa bem claro seu desgosto pela figura de uma das pessoas criadas por Ele, Athos Baxter, incluindo nisso até mesmo vários comentários gordofóbicos. E isso são problemáticas que, em sua maioria, foram consertadas no último livro, pode-se dizer que seriam frutos de seu tempo. Até aí tudo bem...


...Mas essas problemáticas saíram da boca (ou, no caso, do teclado) do semideus Criador. Um semideus adorado por praticamente todos os personagens por ter lhes dado vida. E lá está lá esse semideus Criador, rindo de suas criações e sendo sinceramente bem ofensivo quanto a algumas delas.


Incluindo a tal personagem que eu falei não saber se tratar de representatividade trans ou presente em um contexto feminista. No começo, parece claro que se trata de um garoto trans, que se inscreve no grupo de escudeiros mas é destratado pelos outros porque todos o veem como uma menina. Todos inclusive o próprio Criador, que continua tratando o personagem no feminino durante o livro inteiro mesmo ele dizendo em sua primeira aparição que não desejava isso.

No fim, a conclusão da história do personagem não deixa claro o que ele, ou ela, deveria representar, se era mesmo um garoto trans ou uma garota que queria ser respeitada em um espaço masculino, de verdade não ficou claro. Mas se for um garoto trans, imagina que bizarro o semideus que criou você não respeitar quem você é. Ou te xingar, ou usar comentários preconceituosos contra você, imagina que traumatizante deve ser. Imagina o deus ou deuses em que você acredita pensando isso de você, ridicularizando-o dessa maneira.


E por isso que eu achei interessante também trazer essas problemáticas aqui: além de para alertar quem ficou curioso sobre os livros (já que ninguém é obrigado a comprar livros com todos esses comentários), também para entender o que esses preconceitos significam quando saem da boca do autor da história em um mundo em que esse Criador literalmente dá vida a esses personagens.


E é engraçado porque, claro, todos temos defeitos e se formos mesmo Criadores de nossos mundos, é certo que já fizemos algo de ruim em nossa vida que ofenderia alguma de nossas criações.


E, de certa forma, é esse o enredo da batalha final dos livros.

No final de Estandartes de Névoa, a personagem Liriel Gabbiani, manipulada pelo Mago de Oz, liberta os demônios de Aramis, o equivalente ao inferno de Nova Ether. E, se Nova Ether é formada pela imaginação dos semideuses, os demônios de Aramis têm uma formação por um processo parecido.

Se Nova Ether é uma terra formada pelas formas–pensamento de semideuses guiados por um Criador, Aramis significa o pior do subconsciente desses mesmos semideuses. Quando você sente ódio de alguma coisa, esse sentimento por um momento toma forma em um plano mental, que pode desaparecer se o seu ódio for substituído por perdão sincero, ou pode crescer e tomar vida própria se esse ódio for alimentado. Mas se esse objeto for um motivo de ódio de várias pessoas, não há mais como fazê–lo desaparecer. Imagine o sentimento gerado em uma população através de pais que matam filhos, de homens que brutalizam mulheres, de falsos amigos que roubam de pessoas que lhes estenderam a mão. Imagine o tipo de energia emanada de um ato racista, de uma atitude xenofóbica, do deboche de um sonho. Imagine esses sentimentos odiosos alimentados e compartilhados por milhões de semideuses diariamente, talvez dentro deles, talvez ao redor deles, não importa. Simplesmente imagine esses sentimentos tomando vida própria. E então imagine que tipos de monstros eles poderiam gerar.

Para combater esses monstros, a jovem bruxa Ariane Narin, a mesma que estava em vários trechos que eu compartilhei aqui aprendendo lições sobre a vida com Madame Viotti, reúne seu coven e os sacerdotes de Quimera (o equivalente ao Vaticano) para fazer um pedido aos semideuses. Na verdade, para fazer um pedido a um semideus específico. Não ao Criador, mas ao semideus que forma aquele mundo com sua imaginação a partir do que é escrito pelo Criador. O semideus que está lendo as Palavras Semidivinas naquele momento e dando forma àquela versão de Nova Ether.

Na minha leitura, Ariane Narin chamou a mim.

Você entende o que está acontecendo? Você entende que tipos de portas nós estamos abrindo juntos aqui? Ariane Narin, nesse momento, não está apenas falando conosco. Ela está... – Lendo as linhas de éter que me fazem existir nesse momento. Lendo as linhas de éter que conectam você a mim, e a faz existir. E... – Faz toda Nova Ether existir. Desde a primeira palavra, muito além da última que ainda virá. A palavra que conecta humanos a semideuses... – ...e semideuses aos deuses em que eles acreditam... diz ela. A palavra que... – Não importa quem a escreva, desde que... Ela seja escrita e tornada viva na imaginação de alguém. E é por isso que Nova Ether jamais vai desaparecer. Porque, nesse momento, milhões de pessoas estão à espera do deus único cantado por Frei Tuck, na verdade que viria ao mundo após a ascensão do verdadeiro Pendragon e o retorno de Merlim de Christo. O Deus-Máquina que viria salvá-las, porque elas acreditam neles, tanto quanto Ele sempre acreditou naquelas pessoas. [...] – Nós precisamos de você... – a menina do chapéu vermelho lhe implora. – Por favor, não nos deixe morrer. Por favor, não nos esqueça... E é através desse clamor que você vai viajar comigo pelo espaço-tempo até um campo de batalha repleto de uma escuridão que apenas você pode destruir. Afinal de contas, você é o Deus-Máquina dessa história.

Então, eu, o semideus que deu forma a Nova Ether naquela leitura, o Deus-Máquina da história, entrei no campo de batalha em que vários dos personagens que eu havia acompanhado durante um bom tempo lutavam contra o exército do Mago de Oz. Mas o mago-linche possuía um poder enorme... e tentou me derrotar.

Com a sua figura à frente, vocês avançam juntos contra o Mago de Oz. O mago-linche olha diretamente nos seus olhos, e descobre uma memória da qual você se envergonha. O segredo velado que você gostaria que jamais precisasse reter, a lembrança mais dolorosa, que você jamais gostaria de ter vivenciado. Através dela, ele entra na sua mente e etnta emxer ocm esus epnsementos, mebaralhar usas aplavrsa e et imepdir ed ocntinuar a dar ofrma a utdo qauilo uqe setava caontecenodo. (Esqueça) a Voz Dele tEntA PlanTar PaLaVras Na SuA MENt(esqueça)EnquanTo VOCê luta contra ELAs cOm T(Nova)ODA A SUA(Ether) OFRÇA! Não nos esqueça... Um coro se sobrepõe à voz dele, e sua mente retorna. Oz onvamente etnta mebaralhar esus epnsamentos, ams... Por favor, NÃO nos esqueça. A voz das bruxas do coven de Madame Viotti e dos sacerdotes de Quimera se sobrepõe e lhe trazem de volta. Pois nós jamais nos esqueceremos de você.

Mas os personagens de Nova Ether ajudam a relembrar quem eu sou, mesmo que o Mago de Oz tente puxar minhas piores lembranças e me fazer duvidar de mim mesmo. Então, eu finalmente consigo derrotá-lo.

Não havia fim melhor para se dar para Dragões de Éter; não havia batalha final mais apropriada em uma história que associou de maneira tão interessante os conceitos de ficção e de religião. Em um mundo formado pela minha imaginação, ler aquele capítulo no qual eu entrava na história, e eu encerrava a batalha final depois de uma batalha interna contra as manipulações do Mago de Oz... Nos poucos trechos que eu compartilhei aqui pode até soar estranho esse final, mas fez todo o sentido. Dragões de Éter colocou o leitor como parte importante da história, de um jeito que eu nunca havia visto antes e que fechou com chave de ouro essa quadrilogia.


E colocando esse foco tão grande tanto na figura do Criador quanto na do semideus leitor que forma verdadeiramente o mundo, Dragões de Éter chega ao coração do que é contar uma história. É falar sobre sentimentos, é pensar sobre a nossa realidade através de um universo fictício, é botar pra fora tudo o que não conseguimos expressar de outra maneira (e o que conseguimos também).


Cada personagem é isso: um sentimento colocado para fora. E no caso do Criador, vários personagens em várias histórias diferentes podem tratar do mesmo sentimento.

– Agora se concentre na figura de uma única Criadora. Imagine que cada mundo criado por Ela seja uma parte da mesma dualidade que você propôs. [...] O que quer que tenha feito Ela ter criado você na condição em que criou; o motivo que percorre essa criação estará também presente em cada universo diferente que Ela venha a criar. E você não se dissocia dessa outra criação, entende? – Mais ou menos. – Você vive em qualquer mundo de éter que a Criadora deste universo venha a gerar, Ariane! Talvez você tenha outro nome. Talvez você tenha outra forma. Talvez você jamais se lembre. Mas, se o motivo Dela ao criar outra personalidade em outro universo for o mesmo da sua criação neste daqui, então você faz parte dessa nova criação Dela, compreende? – Então eu... tipo... não seria só uma pessoa. Eu seria quase que... o que seria classificado como um motivo? – Uma energia.

Um motivo, uma energia. Para mim, assistir a um filme, ler um livro, maratonar uma série, são atividades tão preciosas por causa disso. Pelo uso da imaginação, pelos sentimentos. A Criação de Ariane aconteceu por um motivo, e a criação de qualquer história que qualquer pessoa venha a escrever vai passar por um motivo, vai refletir a realidade de certa forma. Não tem nada mais precioso do que ver em uma história sentimentos que você identifica.


E se eu nunca vou me esquecer de Nova Ether ou de qualquer outro mundo de éter criado através da minha imaginação a partir das Palavras Semidivinas de um Criador, é por causa disso. As várias questões que essa série de livros trouxe podem não ter respostas concretas, mas essa reflexão sobre a arte de contar histórias é incrível, e é por isso que faz tanto sentido que tenham sido usados contos de fadas e outros clássicos como material de base: essas histórias são as mais reconhecíveis do mundo, e refletir sobre contar histórias através delas é uma combinação perfeita.


Dragões de Éter traz muito a ser discutido e, em meu papel de semideus, foi um prazer participar dessa discussão tão interessante.

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