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Dragões de Éter: a relação entre religião e ficção (parte 1)

  • Foto do escritor: Marcelo Pedrozo
    Marcelo Pedrozo
  • 1 de jul. de 2022
  • 11 min de leitura

Análise do que a série de livros Dragões de Éter (2007-2020) fala sobre religião e sobre ficção ao misturar os dois conceitos.

Neste ano eu reli os três primeiros livros da série brasileira de fantasia Dragões de Éter, porque, depois de dez anos, o quarto e último livro tinha sido lançado. E logo que eu comecei a reler, eu percebi que precisava escrever um texto sobre a série, porque Dragões de Éter tem um tema central que é bem interessante de se ler... e de se fazer um estudo sobre.


Os acontecimentos da série se passam no mundo de Nova Ether, e os livros recontam diversos contos de fadas e outras histórias clássicas, com alguns dos protagonistas sendo Chapeuzinho Vermelho e João e Maria. Os habitantes de Nova Ether cultuam não um deus, mas um semideus chamado de Criador, que, junto a outros milhares de semideuses, mantém aquele mundo vivo.

Assim, para que exista toda essa terra propícia à mágica, é necessário um semideus Criador que crie os alicerces e a vida e todas as leis naturais. Entretanto, ele, sozinho, não teria competência suficiente para manter esse mundo de éter vivo eternamente, pois o esqueceria em determinados momentos, o que culminaria na morte prematura de sua criação. Por isso, é necessário que os outros semideuses se manifestem.

O que é uma grande metáfora na verdade para como funciona o processo de criação de uma história. Logo no começo da leitura do primeiro livro, fica claro que o semideus Criador ninguém mais é do que o narrador e autor da história, e os semideuses que o ajudam a manter Nova Ether viva são os leitores que acompanham os livros. Assim, a série associa religião e ficção, transformando esses dois processos em um só, ao fazer os personagens cultuarem seu autor e seus fãs; nisso, a série tem bastante a dizer tanto sobre religião quanto sobre ficção.

Segundo os personagens, o Criador utiliza as “Palavras Semidivinas” para criar um mundo novo, e é lendo essas palavras que os semideuses dão vida a esse mundo através de sua imaginação.

– Na verdade, Rei Adamantine, a morte não existe. Ao menos, não como pensais. Porque ratifico: tudo o que fazemos neste universo fica gravado, e qualquer semideus poderá dar vida novamente a tais momentos pelo resto da existência. No momento em que Nova Ether tomou forma, todos nós aqui neste salão, e até muito além dele, nos tornamos eternos. – Então... – disse Rei Anísio, raciocinando – ... afirmas que até mesmo semideuses que ainda nem existem poderão, no futuro, quando bem entenderem, retornar a este momento em que estamos agora e dar vida a ele novamente? – Perfeitamente. Afinal, mais uma vez: a energia de um universo não pode ser destruída, apenas transformada. Pelo resto da existência, semideuses poderão voltar a este momento, ou a qualquer outro que já tenha tomado forma em Nova Ether, e fazer a leitura deles, assim como fizemos a leitura de um momento da princesa de Jade já passado. E digo mais: tais momentos eternizados no Tempo nunca serão os mesmos para semideuses diferentes. – Interessante o termo que usas: leituras – disse Rei Anísio. – De onde o tiraste? – Das escrituras sagradas, porque dizem tais escritos que na história da Criação primeiro houve o Verbo. – E o salão voltou a cochichar. – O que quero dizer, senhores, é que eles mexem sim com a mesma energia etérea para dar criação às nossas vidas, mas cada um deles tem tanta individualidade quanto cada um de nós. E isso se reflete na forma como cada um deles nos vê, a ponto de o Criador não ser senhor absoluto do próprio universo responsável por criar.
A vida em Nova Ether, porém, é formada da energia etérea de milhares de semideuses. E cada um deles tem sua própria visão de cada momento e cada criação. Logo, isso dava base às teorias de dezenas de filósofos e cientistas dos dois continentes de que do universo original gerado pelo Criador derivavam milhares de universos paralelos de seus semideuses; milhares de universos de Nova Ether que eram semelhantes, mas nunca idênticos devido à singularidade de cada semideus que lhe dava vida.

Assim, um dos debates levantados é o da morte do autor, bastante conhecido em estudos sobre literatura. Assunto de vários debates, o conceito de morte do autor consiste, em resumo, na participação do autor de um texto se limitar justamente a esse texto, e nada mais. A opinião dele não importa se ele não a colocou no papel. Não é do criador, portanto, o papel de atribuir significado ao que cria, mas sim de quem estiver lendo. Ou seja, ninguém liga se o autor fala que quis dizer isso no livro, o que importa é o que está no livro e o que a pessoa que leu interpretou que estava.

Ao estabelecer que cada semideus – ou seja, cada leitor – tem sua própria interpretação daquele mundo, e cria seu próprio universo a partir da leitura das Palavras Semidivinas, Dragões de Éter dá força à teoria da morte do autor, participando de um dos grandes debates da ficção.


A série também participa de debates sobre a religião, e para falar disso é preciso estabelecer que a religião dos personagens é claramente inspirada no cristianismo. Deixam isso claro personagens como Merlim Ambrosius, o avatar do Criador, que é chamado de Christo de Nova Ether; além da crença de que ele ainda iria retornar àquele mundo em outra vida, nascido de uma virgem. Também podemos falar das fadas que guardam Mantaquim, o reino dos céus, e abençoam os cidadãos de Nova Ether, como os anjos no cristianismo.


Além disso, temos Bruja, a primeira fada caída que foi a origem das bruxas; e Quimera, um lugar considerado semidivino localizado dentro de outro Reino, mas que funcionava como um Estado próprio e autônomo; metáforas óbvias para Lúcifer e para o Vaticano. Dentre várias outras associações.

Estavam dessa vez os dois nos fundos da igreja, enquanto Tuck conferia tudo o que seria preciso para a missa dali a meia hora, como o cálice que transformaria água em vinho, o incenso e o sino que anunciava o início da celebração em nome de Merlim Ambrosius.

Fica claro, então, que o processo de criação de Nova Ether funciona de maneira bem semelhante ao processo de criação do nosso mundo segundo o cristianismo, e isso serve para deixar a associação de religião e ficção ainda mais clara (afinal, em nosso mundo, o cristianismo exerce uma dominação religiosa considerável em diversos países). E quanto mais clara essa associação fica, mais implicações podemos tirar dela.

Ao escrevermos uma história, criamos personagens que não são perfeitos e, principalmente, que não têm uma vida perfeita. Os personagens de Dragões de Éter certamente não são todos felizes e aquele mundo é cheio de traições, assassinatos, desigualdades sociais e vidas terríveis.

– Mas, segundo o Merlim, o Criador é amor. – Talvez tenhamos interpretado mal suas palavras, Anísio. Porque, a cada dia, minha ideia sobre Ele muda de figura – as palavras por aqui já pesavam, como se feitas de chumbo. – Eu já perdi uma mãe... um pai... e um melhor amigo. E nenhum deles de morte natural. [...] Então eu gostaria de ter uma conversa com o maldito Criador e ouvir o que Ele tem a me dizer! Gostaria de saber o motivo de tamanho sofrimento nesta família. E o que fiz de tão ruim para merecê-lo...

Se o semideus Criador dá vida àqueles personagens, então por que vários deles sofrem tanto? Por que alguns têm destinos tão cruéis? Por que alguns têm vidas tão tristes? Por que há uma desigualdade social tão aparente em Nova Ether? O semideus tem seus preferidos?


No meu último texto, eu falei que tudo bem gostar de vilões da ficção, porque eles não fazem estrago real, eles não machucam pessoas de verdade. Mas e se tudo que a gente criasse tomasse vida como Dragões de Éter sugere que toma? E se, a cada vez que escrevêssemos um conto, aqueles personagens se tornassem reais e sofressem de verdade? Seria certo escrevermos sobre tantas desgraças? Nesse caso, não se trataria mais apenas de uma história; haveria estrago real.


Se eu estivesse escrevendo um livro sabendo que tudo o que eu criasse ganharia vida, eu não mataria a mãe, o pai e o melhor amigo de alguém de morte não natural. Eu não criaria um mundo com desigualdades sociais, eu não faria ninguém ser torturado, eu não faria com que nada de ruim acontecesse a essas pessoas se eu tivesse o poder de intervir.

Essa é uma das controvérsias com relação à religião, não é? Se o Deus em que acreditamos é onisciente e onipotente, se sabe de tudo e se pode fazer qualquer coisa, então por que não cura todos os doentes? Por que deixa que pessoas passem fome? A gente não sabe como funciona o processo da nossa criação, e só a fé de cada um pode dar essa resposta. Mas Dragões de Éter propõe um mundo em que o semideus Criador dá vida a tudo escrevendo histórias para o entretenimento de outros semideuses, e portanto coloca traições, guerras, sofrimento, para criar um enredo interessante. Mas se, junto a uma boa história, ele está criando pessoas vivas, e se está fazendo essas vidas serem miseráveis... isso não é um ato extremamente cruel?


Bom, alguns personagens têm suas teorias sobre isso.

– Querida, raciocine comigo: por que a Criadora cria pessoas como a Maria, com vida pobre e difícil, e pessoas como o Axel, de vida rica e de poucas dificuldades? Ariane apertou os olhos e pensou. E pensou. – Porque a gente só dá valor quando vê o outro lado. A gente só dá valor às coisas boas quando passa por coisas ruins. – Certo, mas por que então uma pessoa como a Maria é escolhida para trilhar um caminho tão difícil? Por que, no lugar dela, não aconteceu com uma pessoa de índole criminosa, como muitos que nascem nobres possuem? – Por causa da linha de destino? A que possui um caminho escrito? – Se assim o for, então a Criadora é injusta. – Mas Ela criou as fadas para ajudar as pessoas... – Então Ela é parcial. Porque nem todas as pessoas recebem a ajuda delas... – Recebem as que passam nos testes propostos! – Para quê? – Pra ver se elas merecem. Ariane parou, prestando atenção ao que havia dito. E olhou de lado para Madame Viotti: – É isso que a senhora queria que eu entendesse? – O quê? – Que nós precisamos merecer o amor ou a dor que temos. Mas não do tipo: "Ah, vou ser legal pra merecer isso"! Mas do tipo: "Tá, eu sei que a minha vida é um saco, mas eu não vou reclamar e vou tentar melhorá–la"! [...] – Então por que a Criadora cria pessoas em determinadas situações desvantajosas perto das outras? – Porque quer que elas se tornem melhores ao superar os problemas.

Bom, essa é a teoria dessas personagens, mas eu no lugar delas não iria achar isso uma desculpa muito boa não, se alguém com o poder de me fazer feliz está fazendo minha vida ser miserável eu não ia gostar nem um pouco, é injustiça e parcialidade sim.


Inclusive, falando em parcialidade.

– Acabou, Babau – disse fada Terra. – Há tempos você profana este lugar sagrado e desafiou com isso o poder dos semideuses. Entretanto, hoje você ousou enfrentar diretamente três leis semidivinas, e não será perdoada por isso. A Lei do Livre-Arbítrio neste momento está sendo retirada de você, e sua existência será extinta para todo o sempre. [...] Cada pessoa ali presente entendia que não era, na realidade, uma fada quem estava se manifestando. Era o próprio semideus Criador, que falava através de sua avatar, com uma criação que ousou desafiar Suas leis. Três delas, na verdade. Não matará um Rei – disse para si o professor Sabino von Fígaro. [...] Não atacará meus avatares – disse para si o clérigo responsável por aquela catedral, Cecil Thamasa. [...] Não usará de magias proibidas em ensinamentos sagrados! – sussurrou para si a maga branca Madame Viotti.

Nessa passagem, o Criador em pessoa bane para sempre a existência da bruxa canibal Babau, por ela ter desafiado algumas de Suas leis. E perceba que a bruxa Babau, depois de uma vida inteira torturando e matando pessoas a torto e a direito, só foi receber uma punição semidivina quando matou um Rei. Quando atacou uma fada. E quando fez isso em uma catedral.


Ou seja, não é só desigualdade social, é desigualdade semidivina mesmo, o semideus Criador tem seus preferidos; nada vai acontecer com você se matar um plebeu mas você pode ser banido da existência se matar um Rei.


Essas são algumas das problemáticas que nascem de nossa visão de um Criador onipotente e onisciente, que são problemáticas que as pessoas têm na vida real com algumas religiões, mas que se tornam explícitas quando o processo de criação de uma história é igualado ao processo de Criação de um mundo.

Mas reparem que, na passagem acima, Babau, ao ser retirada da existência, perde a Lei do Livre-Arbítrio. Na vida real, essa é uma das razões para explicar o sofrimento que Deus permite que nós passemos: se uma pessoa quer fazer mal a outra, ela pode, porque é livre. O que é um conceito que tem suas falhas, mas de qualquer maneira: nesse caso, em Dragões de Éter, como pode alguém ter livre arbítrio? Não é o Criador que escreve como sua história vai se desenvolver? Não é ele que cria aquelas pessoas e define todas as suas ações?

– Entretanto, não importa de que mundo de éter estivermos a falar, todo mundo de éter que já foi ou será criado, antes de nascer, é escrito. – Escrito, tipo, pela Criadora? [...] Peraí, então a gente não manda nada na nossa vida? Tipo, tudo o que a gente faz já estava escrito? – Não. Entenda: o nosso destino quando nós somos criadas, Ariane, tem um motivo. Nós somos criadas por um motivo. Entretanto, nós temos algum livre-arbítrio. A Criadora nos permite surpreendê-la em muitos momentos. E, de vez em quando, os planos iniciais que estavam escritos mudam, entende? – Mas continua escrito? – Ou talvez Ela esteja escrevendo-o neste exato momento, como nós poderíamos saber? Teríamos de ser semideuses para entender o que existe acima de nós. – Como você acredita que funciona a cabeça da Criadora, madame? – Anna, querida, particularmente eu acredito que determinados eventos e determinadas pessoas foram criadas com uma missão que não pode ser interrompida, entende? Ariane não pode ser tão especial por um capricho semidivino. Entretanto, muitas vezes nossas atitudes diante da vida, nossa postura diante do mundo, pode modificar linhas que talvez estivessem traçadas, mas ainda não tinham sido escritas, compreende? – Peraí, madame! Deixa eu ver se entendi essa parada que você está dizendo. Você quer dizer que a gente nasce com uma missão, mas nem todo mundo é obrigado a seguir essa missão. – Isso. – E que muitas vezes a gente pode até modificar o que estava escrito. – Não, não o que estava escrito. O que seria escrito. Eu quero dizer que, muitas vezes, um homem que seria mau pode modificar sua essência e merecer uma segunda chance. Eu quero dizer que homens medíocres, que deveriam passar por esse mundo em branco, são capazes de feitos extraordinários, que os destacam da multidão. Eu falo que casais que não foram criados para ficar juntos podem se mostrar almas gêmeas. E casais que foram criados para tal podem se dissolver em uma estrada sem volta. Ou talvez uma estrada correta, mas escrita por linhas tortas demais para que pudéssemos lê-las, compreende?

Aqui, a personagem Madame Viotti sugere que, por mais que exista um plano para tal personagem, ele pode ganhar vida e mudar esse plano. E isso acontece de certa forma na vida real, é comum um escritor dizer que estava planejando tal caminho para tal personagem, mas, conforme foi escrevendo, um destino mais natural foi aparecendo, “o personagem foi tomando vida”. Claro que nesse caso é uma metáfora, o personagem não tomou vida de verdade... mas em Dragões de Éter a ideia seria essa. Há um destino traçado, mas os habitantes de Nova Ether podem mudá-lo se ele ainda não foi escrito pelo Criador.

E há personagens que chegam mais longe, que questionam até mesmo se os semideuses têm qualquer controle sobre aquele universo:

– Não, não duvido da existência desse Criador e dessa força que se subdivide em formas de semideuses ou sabe-se lá como uma pessoa queira acreditar. O que contesto é a dependência de nossas vidas dessas forças. [...] Sabe, acredito que o conceito em que se acredita por aqui, que eles nos dão existência, na verdade, é um conceito invertido. Tenho a crença pessoal de que essa é apenas a forma que eles têm para que tenham consciência da nossa existência. – Então nós existiríamos de uma maneira ou de outra? – Sim. Quisessem eles ou não, tendo consciência de nossa existência ou não, tudo o que acontece em Nova Ether já estava escrito e pulsando em algum lugar cósmico, e as forças que chamam de semideuses são apenas observadores que podem apenas torcer por seus preferidos e odiar seus malditos.

Seríamos nós apenas emissários das histórias que contamos? Será que apenas as recebemos de um mundo de éter e as reproduzimos achando que são fruto de nossa imaginação? Será que não existe um Criador propriamente dito?


Esses são alguns dos vários debates interessantes trazidos por Dragões de Éter sobre religião e ficção, e boa parte do que me motivou nessa releitura foi entender essas associações que a série fazia para poder escrever esta análise depois. Mas ao mesmo tempo em que ela é muito interessante de se analisar... também é uma série com várias problemáticas, e eu vou falar sobre isso na segunda parte da análise, daqui a duas semanas.

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