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Caça Talentos e o parentesco não explorado de Bela e Silvana

  • Foto do escritor: Marcelo Pedrozo
    Marcelo Pedrozo
  • 4 de jun. de 2021
  • 10 min de leitura

Análise de um parentesco deixado nas entrelinhas entre as personagens Bela e Silvana no seriado infantil Caça Talentos (1996-1998), e o que isso significa para a qualidade do programa.

Caça Talentos foi um seriado infantil da Rede Globo que foi ao ar de 1996 a 1998, com quase 500 episódios. Ele era protagonizado pela Angélica, no papel de Bela, uma fada que precisa escolher se quer pertencer ao mundo real ou ao mundo mágico. Foi um seriado que me marcou muito na infância, quando eu assistia às reprises do Canal Viva, então eu tenho um carinho enorme por ele.


Mas a verdade é que o seriado não teve bem um final. Nos últimos episódios, a história se recusa a decidir se Bela ficará no mundo real ou no mundo mágico, adiando a decisão que ela tem que fazer, e adiando também seu romance com o co-protagonista Arthur, que só pode acontecer se ela decidir se tornar humana para sempre. O final fica em aberto, não fechando a história principal que está ali desde o começo, porque provavelmente imaginaram que poderiam continuar a história em algum momento. Mas mais de 20 anos depois, isso não aconteceu, e o seriado ficou sem um final mesmo.


E isso afetou uma história específica, que é a da relação de Bela com a vilã Silvana. Mas já chego nisso. Antes, um rápido resumo da história da série.


Bela nasceu no mundo real, mas seus pais morreram em um acidente de carro quando ela era bebê. Ela foi então adotada pelas fadas Margarida e Violeta e levada ao mundo mágico, onde se tornou também uma fada. Mas quando cresce, Bela precisa escolher entre sua parte fada e sua parte humana; então, ela vai para o mundo real, onde deve ficar um tempo até fazer sua decisão.


Lá, ela trabalha na falida agência de televisão Caça Talentos, onde se apaixona pelo dono da agência, Arthur. Mas os dois não podem ficar juntos, porque se Bela beijá-lo, se tornará humana para sempre. Assim, Bela permanece na agência, ajudando nas diversas tentativas de sair da falência e produzir programas de televisão de sucesso, e escondendo sua verdadeira identidade de todos.

Nisso, a vilã da série nas primeiras três temporadas é Silvana. Ela é dona de uma porcentagem da Caça Talentos, mas vive sabotando as tentativas de Arthur de sair do buraco, porque quer que ele venda o casarão para ganhar seu dinheiro.


Silvana tem uma assistente cômica e burra, Drica, que é, desde o começo, a única pessoa que desconfia das ações de Bela. Drica vive tentando convencer Silvana de que Bela é uma fada, e já presenciou alguns atos mágicos dela, mas ninguém nunca acreditou.


Além disso, Silvana tem um histórico interessante: ela cresceu no Orfanato Lar Sombrio, chefiado pela cruel Dona Perpétua, em uma infância terrível que a tornou a pessoa fria que é hoje. Silvana tem também um urso de pelúcia, Nanás, que é seu confidente. Em vários momentos do seriado, ela desabafa com ele sobre seus planos que dão errado e faz monólogos de vilã.


No começo da quarta e última temporada, Silvana deixa a série, saindo-se vitoriosa depois que um de seus esquemas finalmente dá certo (mais detalhes daqui a pouco). O resto da temporada tem como vilã a personagem Diana/Bárbara, uma criminosa que tenta conquistar Arthur para casar-se com ele, matá-lo e ficar com o dinheiro da agência.


Na história final do seriado, Bárbara consegue se casar com Arthur graças a uma de suas armações, na mesma época em que descobre que Bela é uma fada. Bela também descobre sobre as intenções de Bárbara, e interrompe a lua de mel dela com Arthur. Bárbara usa um dos livros de feitiço que roubou de Bela para desaparecer (voltando logo depois como uma bruxa após passar algum tempo no Mundo Mágico do Mal, e sendo derrotada por Bela), enquanto Bela e Arthur decidem ficar juntos.


Os dois decidem, então, se casar, e Bela entende que isso significará que sua decisão foi enfim tomada: ela permanecerá no mundo real para sempre, escolhendo seu lado humano. Porém, após consultas com o Grande e Poderoso Merlin, chefe mítico do mundo mágico, as fadas avisam que Bela não poderá se casar com Arthur, já que ainda tem uma missão como fada a cumprir.

Bela então conta a verdade a Arthur e revela que não poderá se casar com ele. O casamento dos dois seria parte do programa Casamento Pra Você, necessário para salvar a agência. Quando eles desistem, o dono da emissora, Júpiter, se irrita e exige um novo programa ou romperá o contrato. Todos param por um momento para tirar uma foto e é esse o final. Ele fica em aberto, sem nunca sabermos se Bela chega a cumprir sua missão, se escolhe o mundo real ou o mundo mágico, se a Caça Talentos tem seu contrato renovado e sai da falência. E na cena final, Angélica, com o figurino da Fada Bela, promete que as aventuras da personagem continuarão...


Mas nunca continuaram. A produção do seriado parecia contar com algum retorno no futuro, seja na volta da série ou em outro formato, que nunca veio, e por isso deixaram a história em aberto. O que é bem triste. Mas, bem, esse texto não é sobre isso. E sim sobre uma história bem específica, que recebeu indícios durante a série inteira, mas que nunca chega a ser explorada.


Um segredo que nunca foi comentado durante o seriado, mas que é extremamente óbvio se você prestar um pouco de atenção, que é o seguinte: Bela e Silvana são irmãs.


Sim, a personagem principal e a vilã da série são irmãs e isso nunca foi revelado. “Ah, mas você só está dizendo isso porque as duas são órfãs? Nem deve ter evidência nenhuma disso!”. Bom, se fosse assim eu teria guardado essa teoria, e não feito um texto inteiro sobre ela. Mas a verdade é que a série, desde a primeira temporada, deixa claro que, sim, Bela e Silvana são irmãs.

Tem um trecho bem específico da história O Exame Médico, da segunda temporada, em que Silvana acredita estar morrendo após receber um exame trocado. Nisso, ela primeiramente mostra sinais de arrependimento por suas ações, mas logo depois descobre que o exame havia sido trocado; Silvana então continua a fingir para todos que está doente e que precisa de uma cirurgia cara, em uma tentativa de convencer Arthur a vender o casarão.


De qualquer maneira, em uma cena específica, Silvana está conversando com Bela, em meio a seu novo comportamento, e faz uma comparação bem específica entre as duas: ela nota que ambas são órfãs, e que é algo que ela nunca tinha pensado, mas é verdade, elas têm essa característica em comum, e a série usa isso para criar um laço entre elas.


Então, o seriado já estava muito ciente da semelhança entre Bela e Silvana, e fez questão de apontar diretamente para ela em certo momento. Mas tá, ainda não é o suficiente para dizer que as duas serem irmãs é mais do que só uma teoria.


As coisas começam a tomar forma na história Apocalipse Girls, a primeira da quarta temporada. Nela, Bela encontra objetos antigos de sua infância, inclusive uma foto sua bebê, e acaba fazendo uma descoberta: ela tinha uma irmã. Durante a história, a bruxa Melissa, do grupo musical Apocalipse Girls, finge ser a irmã de Bela para conseguir o domínio do Cristal Encantado, mas no final, é revelado que era tudo uma farsa, e Melissa não era a verdadeira irmã de Bela.

Na história seguinte, Escolinha do Professor Cabral (sim, em uma paródia da Escolinha do Professor Raimundo), a filha de Arthur, Pepê, e seus amigos encontram uma mala cheia de dinheiro, que pertence a um grupo de bandidos e que acaba passando de mão em mão na Caça Talentos, inclusive chegando em Silvana.


Ela e seu então parceiro no crime, Lobo, pegam a mala e fogem para a Costa Rica, abandonando Drica e mandando-a para a Cochinchina. Ao perceber que foi enganada, Drica retorna à Caça Talentos, que está vazia, a não ser por Bela – e pelos bandidos que vieram atrás da mala de dinheiro e a estão fazendo de refém. Drica corre e acaba se colocando na frente de um tiro que ia em direção à fada, salvando sua vida.


Os bandidos fogem, e Bela leva Drica ao mundo mágico, pedindo ao Grande e Poderoso Merlin que salve sua vida. Merlin então transforma Drica em uma fada, e ela fica vivendo no mundo mágico, saindo da série a partir desse episódio.


E na história seguinte, é a vez de Silvana de sair do seriado. Ela e Lobo voltaram à Caça Talentos na última cena de Escolinha do Professor Cabral, machucados após um encontro com os bandidos donos da mala de dinheiro. Silvana termina a história prometendo vingança contra a Caça Talentos.


E ela realmente consegue. Enquanto os outros personagens estão lidando com a prisão de Arthur pelo programa da Escolinha do Professor Cabral – por ter sido ofensivo aos professores segundo o Ministério da Educação –, Silvana está sozinha na Caça Talentos e acaba sendo a única a receber a notícia de que ela será derrubada para a construção de um metrô. Ela então pega o dinheiro da indenização e foge, deixando um vídeo para todos assistirem.


No vídeo, Silvana debocha de cada um dos personagens, inclusive de seu próprio urso de pelúcia confidente, Nanás – ela comprou um novo urso, maior, para substituí-lo. Silvana ri de sua vitória, afinal, e essa é sua última cena na série, pois ela também deixa o seriado depois desse episódio.

E aí, o parentesco dela e Bela nunca é explorado na série, porque a personagem deixa o elenco cedo demais. Digo, não sei se eles teriam explorado se não fosse isso, mas foram tantas pontas soltas deixadas pelo final em aberto que eu imagino que, se fossem fazer um final tendo em mente que seria o final mesmo, teriam fechado essas histórias, e que só não o fizeram porque imaginavam que teria algo mais.


Mas tá. Isso não significa nada – o fato de Bela realmente ter tido uma irmã não significa que essa irmã seja Silvana, mesmo que ela seja a conclusão óbvia, afinal, o fato de ela ser órfã foi bem demarcado na série. Mas ainda assim não seria o suficiente para eu ter feito esse texto, porque afinal, podia ser só uma coincidência, não?


Não. Porque em um episódio lá da primeira temporada, muito antes de qualquer revelação sobre Bela ter tido uma irmã ou da comparação das duas na segunda temporada (sobre serem ambas órfãs)... uma cena de dez segundos já revelava tudo. Mesmo sem o resto, mesmo sem Bela ter descoberto que tinha uma irmã, já dava para saber.


Isso acontece na história TV Nostalgia, em que, em meio a vários enredos na Caça Talentos, Bela acaba adoecendo. É uma doença mágica que a está transformando em planta, e ela vai para o mundo mágico para se tratar. Lá, as fadas Margarida e Violeta a ajudam, mas para se curar, Bela precisa de uma poção que, entre seus itens, requer um objeto de cada um de seus amigos da Caça Talentos.


E um dos objetos que o seu então ajudante no mundo real, o duende Órion, pega é, adivinhem só: Nanás, o urso de pelúcia confidente de Silvana (o mesmo que ela dispensa sem dó em sua última aparição na série). Nanás é o último item a ser colocado na poção, mas antes disso, Bela parece reconhecê-lo por um breve momento. E quando ela o pega, tem um rápido flashback muito conhecido do seriado: uma batida de carro.


Lembram como eu disse que os pais de Bela morreram? Pois é.

Planta faz isso?


Caça Talentos era uma história infantil que provava muito bem que histórias infantis não significam histórias burras. O seriado tinha uma grande complexidade no enredo, além de uma continuidade grande entre as diversas histórias. Não eram dez capítulos totalmente desconexos dos seguintes, todos ajudavam a criar uma história maior que fazia sentido, e vários enredos eram contados em diversas histórias, especialmente nas temporadas finais.


Um exemplo é o de Souboy, o office-boy da Caça Talentos, que cai em uma armação de Silvana na terceira temporada, e passa boa parte da temporada trabalhando para ela, apenas para descobrir a mentira vários episódios depois. Ou a própria trama de Bárbara/Diana, a nova vilã do final do seriado, que passa diversos episódios antecipando sua chegada até culminar em sua aparição, e então vários episódios enganando a todos na Caça Talentos. Os próprios personagens secundários têm histórias complexas, como a de Avalanche, lutador de boxe que se aposentou após causar acidentalmente a morte de um adversário em uma luta, e que sempre hesita em voltar a treinar.


A construção da trama era rica, com diversas histórias paralelas que não eram esquecidas, que sempre voltavam, e com uma continuidade imensa entre as tramas, não só em enredos que duravam bastante, como eu mencionei, mas também em menções constantes a eventos anteriores – o que indica um interesse grande dos criadores na história (eu comentei sobre algo parecido nesse texto sobre Thor: Ragnarok).


De qualquer maneira, o parentesco óbvio de Bela e Silvana é um elemento que indica essa qualidade da história. Afinal, ele estava planejado desde pelo menos a segunda metade da primeira temporada, que foi quando as primeiras pistas sobre isso apareceram – pelo menos, as que eu percebi. Mas ele foi guardado, com novas pistas surgindo só temporadas depois, uma história construída com calma. E, caso a não descoberta desse fato tenha sido intencional, ele foi deixado nas entrelinhas, com o público podendo descobrir se prestasse mais atenção, mas ao mesmo tempo também podendo gostar da história sem ele.

Esse tipo de detalhe casa bem com o que eu falei naquele texto sobre Ragnarok, indicando justamente o contrário do que eu critiquei no filme do Thor e em Once Upon a Time. Lá, a história era criada de uma maneira afobada, digamos assim. Detalhes surgiam à medida que a história ia sendo contada, sem preocupação para que essas novas ideias fizessem sentido no contexto, resultando em um universo bagunçado.


Não explicaram como a Mulan foi de membro do grupo do Robin Hood para uma agiota dos contos de fada em Once Upon a Time. Não explicaram a ausência da Sif e ignoraram completamente qualquer importância do romance de Thor e Jane e de outros elementos dos filmes anteriores da franquia em Thor: Ragnarok. Mas em Caça Talentos, eles se preocuparam com a consistência de um detalhe que nem foi revelado para o público, que é teoricamente muito menos importante que essas partes das outras obras, que eram mais centrais.


E, bom, é inegável que ambas as obras (Once Upon a Time e o MCU) tem/tinham uma porcentagem alta de público infantil em seus telespectadores, mas ao mesmo tempo ainda há/havia um número enorme de jovens e adultos assistindo. Mas Caça Talentos é um seriado assumidamente infantil, que tem linguagem infantil, que tem um humor infantil... mas ainda é um seriado inteligente, e nesse quesito pelo menos, foi muito melhor do que essas outras obras.


Uma história que se mantém coesa, que não ignora eventos passados e que tenta sempre deixar os elementos do enredo funcionando para que não se contradigam, não apenas se mostra como um produto de qualidade, como também mostra que os envolvidos no processo de criação se importam com a história que estão contando... e é muito mais fácil para um espectador se importar com uma história assim.


Por essa e outras razões, Caça Talentos é uma obra que me marcou muito, e que eu acho que se mantém forte até hoje. E o parentesco não revelado de Bela e Silvana é só um dos elementos que ilustram o que eu acabei de dizer: é uma história com a qual os criadores demonstram se importar, e que portanto procuram manter coesa. Até mesmo criando pequenos detalhes nos quais nem todos vão reparar e os deixando consistentes.

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