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Chico Bento e os arcos de personagem planos

  • Foto do escritor: Marcelo Pedrozo
    Marcelo Pedrozo
  • 17 de set. de 2021
  • 10 min de leitura

Uma análise da construção do personagem Chico Bento, especialmente em Chico Bento Moço (2013-2021), que segue a não tão conhecida fórmula do arco de personagem plano.

Vocês já ouviram uma reclamação de alguma história sobre um personagem ser “perfeitinho demais”? Sobre esse personagem não ter defeitos, e sobre como isso deixa a história desinteressante, porque não vamos vê-lo errar e se desenvolver?


Bom, eu já. Várias vezes, na verdade, mas aqui quero falar sobre uma delas. Sobre um personagem específico que eu já ouvi reclamarem muito sobre ele ser perfeitinho, sobre isso ser irreal e prejudicar a qualidade da história.


O Chico Bento.


“Ué, como assim? Desde quando o Chico Bento é um personagem perfeitinho? Ele sempre teve um monte de defeitos, era preguiçoso, não queria ajudar nas tarefas, ia mal na escola... Ele também sempre foi bondoso, atencioso, mas sem defeitos ele nunca foi!”


E realmente. O Chico Bento clássico tem todos esses defeitos. Ou pelo menos tinha, porque nas histórias mais recentes ele anda um pouco mais prestativo, ajudando mais com as tarefas e indo um pouco melhor na escola. Mas, de qualquer maneira, não é sobre o Chico Bento clássico que eu estou falando, e sim sobre... o Chico Bento Moço.

Em 2013, foi lançada a revista Chico Bento Moço, irmã da revista da Turma da Mônica Jovem, usando o mesmo conceito dela, só que com os personagens da roça. Chico, Rosinha, Zé Lelé e todo o seu núcleo também haviam crescido, e também teriam suas próprias aventuras. Inclusive, saudades da revista, que acabou neste ano.


É no contexto de sua versão “moça” que o Chico Bento é classificado como perfeitinho, porque ele meio que é mesmo. Chico é um bom aluno, esforçado, muito diferente da criança preguiçosa que ele era na maior parte das vezes. Em determinados momentos da revista, ele chega a ter quatro empregos simultâneos (além da faculdade), praticamente trabalhando vinte e quatro horas por dia, quase sem descanso, mas nunca reclamando, e indo bem nos estudos.


Além de ser esforçado, ele é educado, tratando todos com a maior gentileza possível, ingênuo várias vezes, por não entender a malícia de certas pessoas, e também o “herói” da revista ao estar sempre ali pronto para ajudar. Foi isso o que ocasionou seu término com a Rosinha, porque ele estava sempre ocupado ajudando a todos e salvando o mundo que acabava não tendo muito tempo para ela. (Sim, os dois estão separados no momento atual, e o Chico está namorando a Fran, da faculdade dele.)


E isso é notado pelos próprios personagens da revista, que o veem como um exemplo de pessoa, como o namorado perfeito, como o herói que vai salvar todo mundo, como o cara que toma todas as decisões certas, despertando a admiração e a inveja de muitos. Ou seja, essas constatações não são infundadas – o Chico Moço é perfeitinho mesmo. Então quer dizer que realmente eu concordo com quem critica isso? Que o Chico é perfeito demais e que ele não deveria ser?


Não. Porque ele ser assim não é um problema. Na verdade, faz todo o sentido.


Porque o nosso protagonista não precisa ser necessariamente sem defeitos para que a história funcione. Esse é o meio mais tradicional de se contar uma história, com o personagem tendo um defeito bem específico e melhorando à medida em que a história acontece. Mas não é o único meio, e o protagonista não ter esse defeito que deve ser consertado não é um problema.

Essa jornada é chamada de arco de personagem. É o modo como o personagem muda durante a história. Tradicionalmente, existem três tipos básicos de arcos de personagem: a mudança positiva, a mudança negativa e o arco plano. E, nesses três tipos de arcos, dois elementos são importantes: a verdade e a mentira.


A verdade é o tema da história, o que ela quer passar. Como eu falei na análise sobre Turma da Mônica: Laços, o tema do filme é a importância da amizade para conquistar nossos desafios. Como colocado pelo Louco: “Juntos vocês podem enfrentar qualquer desafio; separados, não é loucura imaginar o pior”. É esse o arco principal do filme. Nesse caso, a mentira seria que uma pessoa é melhor que as outras, e que você não precisa de amigos e consegue fazer tudo sozinho. No filme, Cebolinha acredita na mentira até descobrir a verdade durante a história, tendo assim completado seu arco de personagem.


E é esse o arco da mudança positiva: o personagem começa acreditando na mentira, até ser exposto à verdade e superar a mentira após acreditar na verdade. Em Laços, Cebolinha começa o longa acreditando que seus interesses são mais importantes que os dos outros e que consegue fazer tudo o que quer sozinho. Mas quando seu plano falha, ele entende que precisa trabalhar em conjunto com os amigos para bolar um novo plano, e que só assim podem resolver seu problema.


Esse é o tipo de arco de personagem mais comum na ficção, e que leva à crença de que todo personagem precisa começar tendo defeitos específicos para então crescer como pessoa durante a trama. Por causa da quantidade de histórias que utilizam esse diagrama, ele se tornou o padrão em nossas cabeças, e quando vemos algo que foge disso – como o Chico Bento Moço –, acreditamos que é um defeito. Mas existem outras possibilidades.

O arco de mudança negativa tem várias variações. Uma delas é basicamente igual ao arco de mudança positiva, só que nesse caso, a verdade em que o personagem precisa acreditar é algo negativo. Esse é o arco da desilusão. Já no arco da “queda”, o personagem começa acreditando em uma mentira e é exposto à verdade, mas a rejeita e continua acreditando na mentira, muitas vezes passando até a acreditar em uma mentira ainda pior. Por fim, no arco da corrupção, o personagem começa acreditando na verdade, mas a rejeita, e por fim passa a acreditar em uma mentira.


Tá. Vários termos técnicos para falar que, no arco da mudança negativa... o personagem muda para pior. Isso não é tão diferente dos arcos com os quais estamos acostumados, da mudança positiva, só que agora com o oposto disso. Mas ainda assim não se aplica aqui no exemplo do texto – o Chico começa “perfeito” e termina “perfeito”.


E é aqui que chegamos ao último tipo tradicional de arco de personagem: o arco plano. Em que temos um protagonista que já começa a história acreditando na verdade. Ele não precisa encontrá-la, porque ele já acredita nela, então não vai seguir uma mudança positiva. Ele também não vai acreditar em uma mentira, porque não é um arco de mudança negativa. Sua crença na verdade muitas vezes vai ser testada na história, mas ele vai continuar acreditando nela.


Mas tá. Cadê as mudanças? O protagonista não vai mudar nem um pouco nessa história? Arcos de personagem não são sobre mudanças?


Bem, são sim. Só que no arco plano, quem muda não é o protagonista. Ele não é mudado pelo mundo. Ele é que muda o mundo.


Ele já começa a história acreditando na verdade, mas os outros personagens não; eles acreditam na mentira. E é através das ações do protagonista, é através da inspiração que ele traz para todos, que os personagens secundários vão passar por sua própria mudança positiva, e vão abandonar a mentira para passarem a acreditar na verdade.

Alguns exemplos que sempre são citados quando se fala de arcos planos são os de Katniss de Hunger Games, do urso Paddington, e de Marty McFly de Back to the Future. Eu vou dizer que nunca li/assisti nenhuma dessas franquias, mas segundo a internet, nenhum dos três personagens muda suas crenças durante as obras, mas eles inspiram o resto do mundo a mudar. Eles são uma influência positiva que traz mudança ao mundo, mas eles em si não precisam dessa mudança.


E o Chico Bento... Ele tem um arco plano. Ele é a própria definição de um arco plano, e é por isso que ele é “perfeitinho”. Porque ele não está lá para melhorar como pessoa, ele está lá para inspirar os outros a melhorarem como pessoas.


Desde muito antes de Chico Bento Moço, inclusive. Mesmo quando ele era criança e ainda era preguiçoso, mau aluno etc, Chico representava a pureza de uma vida longe da correria da cidade, a pureza de uma infância ingênua, onde os melhores prazeres são os mais singelos, como comer goiabas ou nadar no ribeirão. Ele representava a simplicidade da vida, morando em uma cidade longe dos carros barulhentos, dos prazos curtos, da internet viciante, dos eletrônicos em excesso... Essa, mais do que a preguiça, sempre foi a característica mais marcante do Chico Bento, sua visão de que a vida é simples.


Afinal, quantas histórias do Chico Bento clássico não seguem a fórmula de “homem da cidade, geralmente empresário que vai poluir/desmatar, vem para a Vila Abobrinha, conhece o Chico, Chico mostra seus prazeres singelos como nadar no ribeirão, e acaba ensinando ao homem que a vida é simples, e o homem desiste de poluir/desmatar e se torna uma pessoa melhor”? São dezenas de histórias que seguem essa fórmula, que é a própria definição do arco plano, onde o Chico não sofre mudança, mas age como catalisador para que essa mudança aconteça com outro personagem.


Alguns exemplos de histórias assim:


Construindo um novo homem.

Rick Rico, o dono do mundo.


Rico tédio.

As coisas simples.

Além da própria Graphic MSP publicada em março deste ano, Chico Bento: Verdade.

Na Graphic, Chico Bento conhece Adamastor, um homem da cidade, amargurado e sem esperanças após a morte da esposa, e os dois vivem uma aventura na floresta ao encontrarem assombrações muito conhecidas por ambos (a diferença é que Adamastor não acreditava que elas existiam). Verdade segue a fórmula das histórias que eu citei, embora de forma mais complexa por se tratar de uma trama de 80 páginas; inclusive, os próprios extras da edição mencionam como esse é um enredo recorrente nas histórias do Chico.

A pureza do Chico sempre esteve lá para se colocar em contraste com a malícia e a complexidade desnecessária dos personagens da cidade, em histórias com esses empresários adultos criados para gibis específicos, ou nas próprias histórias com o Primo Zeca. Quantas histórias não mostram o Zeca visitando a Vila Abobrinha e deixando de lado sua correria e tecnologia para se tornar uma pessoa mais simples?


E não é exatamente coincidência que os dois personagens mais relevantes do Chico nos Clássicos do Cinema sejam... o Superman e o Steve Rogers, conhecidos justamente por serem representantes supremos da ética e da bondade.

Então, se desde criança essa foi sempre uma característica marcante do Chico, e me arrisco a dizer, a característica que o define como personagem mais do que qualquer outra, em Chico Bento Moço não ia ser diferente. Ainda mais porque CBM tem um diferencial muito importante: ela se passa, na maior parte do tempo, na cidade.


Isso mesmo. Com seus dezoito anos, Chico se muda da Vila Abobrinha para a cidade de Nova Esperança, para entrar na faculdade de Agronomia. Então, boa parte das histórias, especialmente nos primeiros anos da revista, se passa em Nova Esperança mesmo, trazendo o Chico contracenando não com seus amigos da roça, como Rosinha e Zé Lelé, mas com um novo núcleo, criado especialmente para a versão jovem, que vive na cidade.


Porque querendo ou não, Rosinha, Zé Lelé, Zé da Roça, Hiro, todos eles vivem na Vila Abobrinha também, e têm a mesma simplicidade do Chico. Todos sabem aproveitar a vida da maneira mais pura e singela possível. Então para que esse tema seja explorado, não dá para contrastar o Chico com eles ou usar o arco plano nesse caso, porque o Chico não tem como ser o catalisador de uma mudança que não existe. Tanto que as histórias que mais exploravam esse tema traziam ou o Primo Zeca ou outros personagens criados especificamente para isso, como os vários empresários que tinham uma mudança de coração ao conhecerem a Vila Abobrinha.


Então, Chico Bento Moço é o lugar ideal para que essa característica seja explorada, porque agora... o Chico vive na cidade. E não contracena mais regularmente com Hiro e Zé da Roça, mas com Fran, Bombeta, Vespa, Jura, Jácomo, Lee, sua turma da faculdade e seus colegas da república. E todo esse pessoal é da cidade, todos eles têm a correria e a tecnologia e a burocracia que contrasta com a paciência e a praticidade e a simplicidade do Chico.

O enredo de todas as histórias que se passam em Nova Esperança se baseia nos contrastes entre o Chico e o resto dos personagens, especialmente as primeiras. Chico chega a Nova Esperança e tem que aprender a conviver com pessoas que não pensam como ele, que não têm os mesmos costumes, que não têm a mesma pureza que ele tem.


E isso é abordado toda hora. Na segunda edição, seus colegas da república se espantam quando ele passa roupa no tanque, escreve cartas à mão, faz um café da manhã não industrializado e canta uma moda de viola. Na terceira edição, Chico está trabalhando no parque da cidade, e dá a ideia de fazer uma festa lá. Mas ele não contava que a festa que ele ajudou a organizar geraria lixo para todos os lados, porque não conhece o jeito da cidade, e é com uma canção emocionante da roça que ele inspira os convidados a ajudarem a limpar tudo. Provocando a mudança neles.


Na décima primeira e décima terceira edições, seus amigos da faculdade se espantam com a pureza de sua relação com Rosinha, uma vez que eles nunca dormiram juntos, não pensam em ficar com outras pessoas e estão juntos desde a infância. E na décima primeira edição, Chico auxilia a estrangeira Anna, que veio dos Estados Unidos atrás de Genesinho, seu ex-namorado, só para ser maltratada por ele. Ele a ajuda a encontrar um lugar, coloca inclusive no seu nome. E quando Anna anuncia que está grávida e Genesinho rejeita o filho, para provocá-lo, Anna diz que o bebê é de Chico, mesmo eles nunca tendo dormido juntos.

E no final, quando a verdade é revelada, Anna, em seu português ainda básico, explica que não fez isso só para irritar Genesinho: “Mas eu ter envolvido você... porque eu querer que Gene fosse mais parecido com você! Porque eu sonhar com um pai decente para meu filho! E você ser homem mais bondoso e decente que eu conhecer!”.


Em resumo, em Chico Bento Moço mais do que em qualquer outra versão do personagem, faz total sentido que Chico tenha um arco plano. Claro, em algumas histórias, o personagem precisa passar por um arco de mudança positiva. Mas na maior parte das edições e no contexto geral, o que fica mesmo de arco de personagem é o contraste dele com o núcleo da cidade, é a colisão desses opostos, que testa a crença do Chico na verdade – que é sua visão simples da vida – e que inspira os outros personagens a se tornarem a melhor versão de si mesmos, através do contato com ele.


Esse tipo de história não é ruim porque o personagem é perfeitinho. É justamente a “perfeição” dele que faz com que Chico Bento Moço e tantas outras obras explorem tão bem seus temas.


[Para mais sobre os tipos de arco de personagem, eu peguei as informações principalmente aqui.]

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