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Como funciona a narração de uma história?

  • Foto do escritor: Marcelo Pedrozo
    Marcelo Pedrozo
  • 20 de mai. de 2022
  • 6 min de leitura

Análise dos vários tipos de narração na ficção e de como eles se encaixam em suas respectivas histórias, usando a narração de Tokio em La Casa de Papel (2017-2021) como ponto de partida.

Em dezembro do ano passado, terminou enfim a série La Casa de Papel, após ter sido esticada pela Netflix. A parte final foi dividida em dois volumes: os primeiros cinco episódios foram lançados em setembro e os últimos cinco, em dezembro. A divisão funciona para prolongar o período de assinatura dos fãs, mas a história em si chega a um ponto em que faz sentido dar uma pausa após o final do episódio 5. Porque é nesse episódio que um dos maiores acontecimentos da série acontece: a morte da protagonista, Tokio.


A série era centrada nela desde o começo, e o episódio 5 e o volume 1 no geral funcionam como uma grande despedida para ela, o que acaba sendo uma ideia boa já que deixa os cinco episódios seguintes livres para por fim às várias histórias dos outros personagens, e deixa o fim da protagonista ser somente sobre ela. O episódio 5 é cheio de flashbacks de sua vida e não havia maneira melhor de terminar sua história.


Mas essa morte gerou debates estranhos entre os meses de setembro e dezembro. Mesmo após ter sido atingida por diversas granadas, isso já estando ferida, e mesmo após ter tido um episódio sobre ela que claramente estava ali para ser uma despedida, Tokio ainda não era considerada morta por muitos. Várias pessoas achavam que, no volume seguinte, descobriríamos que ela havia sobrevivido. E isso não fazia sentido narrativo nenhum, mas existia um motivo para isso: Tokio não era apenas a protagonista de La Casa de Papel, ela também era sua narradora.


Durante a série inteira, ouvíamos a voz de Tokio em off no fundo, trazendo detalhes de sua história, expondo seus pensamentos e fazendo comentários sobre a situação apresentada na série. Uma teoria famosa era a de que, no final da série, todos os personagens morreriam, menos Tokio, que seria presa e narraria suas aventuras na cadeia. Muitas pessoas então não acreditaram em sua morte, pois afinal, como ela poderia estar narrando, então? Em que momento da vida ela fez aquelas narrações? E ela continua comentando eventos que acontecem mesmo após sua morte, como isso pode acontecer? Não faz sentido! Obviamente, ela tem que estar viva!


Realmente, não faz o menor sentido um personagem morto narrar uma história, onde já se viu uma coisa dessas? Que absurdo, só um roteirista muito ruim para escrever algo assim, imaginem só...

Mas vamos esquecer o fato de ela narrar a série do além por enquanto. Será que, antes de ela morrer, sua narração já fazia sentido? Mais do que isso, em qualquer história, será que a narração em primeira pessoa, agora falando de livros também, faz algum sentido?


Afinal, mesmo que a perspectiva de um livro narrado em primeira pessoa seja limitada, ou seja, mesmo que acompanhemos a história apenas do ponto de vista de um personagem e descubramos as coisas à medida que ele descobre... Quando essa pessoa está escrevendo isso? Ela está escrevendo um diário de tudo o que acontece na própria vida? Com uma escrita estranhamente detalhada, comentando elementos extremamente específicos dos cenários e das roupas dos personagens? Lembrando-se exatamente de cada fala de cada conversa do livro? De cada pensamento tido em cada momento? Como isso é possível?


A série de livros Miss Peregrine’s Home for Peculiar Children, para citar um exemplo entre milhares, é narrada por Jacob, e essa narração em momento algum é explicada. Com que propósito ele está contando essa história? É um diário que ele mantém e nunca contou pra gente? Ele está transformando essa história em livros anos depois dos acontecimentos? Por que estamos lendo isso da perspectiva dele?


Algumas histórias até se propõem a explicar suas narrações em primeira pessoa, como é o caso da trilogia The Kane Chronicles. Nela, alternamos entre os pontos de vista dos irmãos Carter e Sadie Kane, e o livro é tido como uma transcrição de áudios gravados por eles narrando sua história, com algumas piadas durante a leitura, momentos em que os dois brigam para ver de quem é a vez de falar, coisas assim. Mas por mais que seja uma premissa interessante e que renda momentos ótimos, teoricamente não faz sentido essa narração, porque é um número de detalhes imenso para os dois se lembrarem, eles narram coisas específicas demais e conseguem recordar conversas inteiras, cenários, tudo.

Em A Series of Unfortunate Eventses, há algo parecido. A série é narrada por Lemony Snicket, personagem daquele universo, no formato de uma pesquisa que ele está fazendo sobre a vida dos protagonistas, os irmãos Baudelaire. Somos levados a entender que Snicket está seguindo os irmãos em suas desventuras, e pistas lhe contam detalhes do que aconteceu com eles. Assim, ele reúne a informação que recebe em cada livro que escreve. Aqui, a coisa fica pior: mesmo que consideremos que o narrador não seja confiável, afinal ele faz apenas uma coleção de evidências, é estranho que ele narre diálogos dos irmãos que não haveria como ele saber, momentos que não deixariam pistas para uma descrição tão detalhada... A narração dele não faz sentido em muitos momentos.

Voltando a La Casa de Papel, mesmo antes de sua morte, a narração de Tokio não fazia sentido por motivos semelhantes. Afinal, ela não narrava apenas o que acontecia com ela mesma, mas também, por exemplo, o que estava acontecendo com o Professor – personagem que passa boa parte da série longe dos outros –, chegando até a analisar os pensamentos dele. A verdade é que ela contando a história nunca fez sentido se você parar para pensar, mas só foram perceber isso quando ela morreu.


Mas... isso não é nenhum problema. A narração de Tokio não faz sentido, não se encaixa no universo, e tudo bem. E sabe o que também não faz sentido, não se encaixa no universo, e tudo bem?


Musicais.

Não faz o menor sentido que pessoas saiam cantando do nada no meio da rua, no meio de uma conversa, e inventem letras e melodias aleatoriamente que funcionam super bem, e que todos por alguma telepatia saibam toda a letra e a coreografia e cantem e dancem juntos perfeitamente.


E tudo bem.


Sabe o que mais?


Mocumentários. Ou seja, filmes e séries que imitem o estilo de documentários mas que o façam mostrando eventos fictícios, como The Office ou Modern Family. Esse estilo é usado frequentemente para que um personagem converse com a câmera em certos momentos e explique o que estava sentido ou por que tomou tal decisão, como uma maneira de explicitar seus pensamentos, já que não seria possível de outro jeito.

O que é algo que as músicas de um musical também fazem.


Mas nada disso faz sentido de verdade, por que tem esse pessoal conversando com a câmera aleatoriamente? Por que tem esse pessoal cantando sobre seus sentimentos? Não faz sentido!


E de novo, tudo bem. Assim como tudo bem a narração da Tokio, que, depois de morta, conta eventos que não presenciou; assim como o Brás Cubas que escreve um livro do além; assim como o Jacob se lembrando que roupa os amigos estavam usando; ou o Carter e a Sadie recordando mínimos detalhes de conversas tidas há tempos; ou o Lemony Snicket sabendo de absolutamente tudo o que os Baudelaire fizeram mesmo não estando ali. Porque isso tudo está ali apenas como um elemento do roteiro.


As músicas podem estar ali para dar vida ao sentimento de um personagem. Os depoimentos de um documentário que não existe podem estar ali para que o protagonista possa se defender perante o público. A narração de uma personagem morta pode estar ali para deixar um evento mais claro. E tudo isso é usado, principalmente, para dar voz aos pensamentos dos personagens de maneira fácil.

São recursos narrativos que não estão ali para serem questionados, porque eles não fazem sentido mesmo, mas não devem fazer. São instrumentos que a história usa para melhorar nosso entendimento e/ou para deixar a história mais legal de se acompanhar. Então, tentar encontrar uma lógica para a narração da Tokio nada mais é do que uma perda de tempo. Ela não narrou aquilo em nenhum momento da vida dela, mas a gente a escuta narrando mesmo assim, porque a história funciona melhor dessa maneira. É para isso que serve a suspensão da descrença. Porque parte da graça é justamente não fazer sentido. É estarmos lendo ou assistindo algo que usa essa licença poética para melhorar nossa experiência com a história. E tudo bem.

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