Dark: por mais histórias com o paradoxo da predestinação
- Marcelo Pedrozo
- 14 de jan. de 2021
- 10 min de leitura
Atualizado: 7 de mai. de 2022
Uma pequena crítica a como o final de Dark muda o tipo de viagem no tempo trabalhado na série até então.

Pra começar o texto, quero contar uma história sobre viagem no tempo (que aliás eu também contei no episódio do podcast ligado a esse texto). Em 2014 foi introduzido, na saga da Turma da Mônica Jovem Umbra, o personagem Xavecão, uma versão do futuro do Xaveco.
Ele tinha voltado no tempo para impedir a morte do Cebola, porque ela era o evento que causava a dominação do mundo e um quase apocalipse nuclear, enfim, um monte de desgraça. Assim, pra impedir que tudo acontecesse, foi descoberto um feitiço para voltar no tempo e Xavecão voltou (inclusive, voltou acompanhado, mas isso é uma longa história) para impedir que Cebola morresse e que o mundo entrasse em caos.
Então ele participa da saga Umbra, ajuda a turma a lutar contra os arautos do apocalipse, coisa normal na Turma da Mônica. E no final, Denise descobre o segredo dele, sobre ele ser o Xaveco do futuro. Xavecão confessa, revela que veio pra impedir a morte do Cebola e tal.
E duas edições depois, ele reaparece, agora morando na casa de praia do Xaveco do presente (ou Xavequinho), assumindo a identidade de primo dele. E ele fica ali, cuidando de sua vida e procurando sua namorada, a Denise do Futuro, que voltou no tempo com ele e se perdeu na viagem. E ele continua lá, reaparecendo vez ou outra.

Mas aí muita gente se confundiu. Se o Xavecão conseguiu mudar o futuro, então como ele ainda existia? Ele deveria ter desaparecido, não? Era assim que viagem no tempo funcionava, não? Foram perguntar pro roteirista da história, o Emerson Abreu, e ele respondeu mais ou menos assim: viagem no tempo não existe. Ninguém nunca viajou no tempo pra dizer como é. Então cada escritor, cada roteirista, faz do jeito que quiser. Na versão dele, as pessoas não desaparecem mesmo que mudem o futuro, porque elas não estão mais naquele futuro. Então o Xavecão continua ali.
E na versão de outro autor, ele poderia ter desaparecido. E estaria tudo bem, porque ninguém nunca viajou no tempo pra dizer como é. A gente não sabe como seria, então quando representamos esse elemento na ficção, fazemos cada um do seu jeito.
Dito isso, existem três tipos, ou três categorias gerais de viagem no tempo na ficção. Elas ainda têm suas variações, não é sempre a mesma coisa, mas de forma geral são essas 3.
Primeiramente tem a teoria das realidades alternativas. Que é usada por exemplo em Avengers: Endgame. Quando os heróis voltam no tempo pra recuperar as Joias do Infinito, eles criam realidades alternativas a partir de suas mudanças, mas sua linha do tempo original fica preservada. Tanto que o Loki morre na linha do tempo original, mas graças às mudanças dos Vingadores, nessa nova realidade ele foge com uma das joias e vai ganhar sua própria série no Disney+. O Loki original morreu, mas na realidade alternativa ele ainda está vivo.

(Inclusive, eu acho que Endgame faz um trabalho bem ruim de explicar esse tipo de viagem no tempo. Eles têm uns diálogos científicos, mas são todos muito confusos. Era simplesmente só chegar e dizer “quando você volta no tempo, você cria uma realidade alternativa, a sua realidade original fica igual”. Pronto. Mas os diálogos que eles escolheram pra explicar foram confusos demais. Se bem que depois do filme os diretores e os roteiristas pareceram discordar de qual tipo de viagem eles usaram, então eu imagino que seja por causa disso.)
Depois, temos o tipo mais comum, presente em Back to the Future, que é simplesmente que se você voltar no tempo você consegue mudar o passado. Não é criar uma outra realidade, é mudar os eventos da sua própria realidade. E é geralmente esse tipo o mais usado na maioria das obras de ficção.
E finalmente, o terceiro tipo, e é aqui que eu quero chegar: o loop temporal fechado (closed time loop), ou paradoxo da predestinação (predestination paradox), em que você não consegue mudar o passado. Tudo o que você faz quando volta no tempo só ajuda a construir o presente em que você já estava. Em outras palavras, é um ciclo inquebrável e você não consegue mudar o que acontece, por mais que tente.
E esse tipo de viagem no tempo é usado na série Dark, ou pelo menos na maior parte da série. E é aqui que eu quero chegar.
Dark é uma série sobre viagem no tempo. Desde o comecinho da série, esse é o enredo principal. A série se passa na cidade de Winden, cujos moradores estão presos nesse ciclo de viagem no tempo, fazendo diversas viagens ao futuro e ao passado e apenas contribuindo para que a linha do tempo continue do jeito que sempre foi.

Então os vários personagens, das quatro famílias principais da série (Kahnwald, Nielsen, Tiedemann e Doppler), vão viajando através de uma máquina do tempo, da caverna da cidade ou de outros meios, e com isso visitando seus descendentes, seus eus futuros, e até tendo filhos em outro lugar da linha do tempo.
E com isso logo é revelado que a existência da grande maioria dos personagens depende da viagem no tempo. O filho de Jonas, por exemplo, é o pai de Tronte, que é o pai de Ulrich, que é o pai de Mikkel, que é o pai de Jonas. É um ciclo infinito em que os personagens são seus próprios tataravós.
Então sem viagem no tempo, a maioria dos personagens nem existiria. Dark é, essencialmente, o paradoxo da predestinação elevado ao nível máximo. Tudo na série é um ciclo, tudo na série é um paradoxo, tudo na série causa o que já havia acontecido antes, é um ciclo que por mais que você tente quebrar, você não vai conseguir, você vai simplesmente causar o que já havia acontecido antes, é impossível mudar o passado.
E quando eu assisti a série pela primeira vez, eu fiquei impressionado. Porque o paradoxo da predestinação sempre foi meu tipo de viagem no tempo preferido, e ter uma série que lida exclusivamente com ele, e não só lida com ele como o eleva ao máximo, era algo incrível.
Desde que eu assisti Harry Potter and the Prisoner of Azkaban, em 2014, eu me apaixonei pelo paradoxo da predestinação. Nesse filme, Harry e Hermione precisam voltar no tempo algumas horas no final da história, e interferem em seus próprios acontecimentos. Mas no filme, antes mesmo de ser revelado que viagem no tempo era uma parte da história, já vemos as consequências dela.

Por exemplo, Harry, Hermione e Ron estão na cabana de Hagrid fora do horário, bem na hora em que o hipogrifo Buckbeak vai ser executado. Eles precisam sair rápido, pois logo o executor vai chegar junto com o Ministro da Magia e eles não podem pegar os alunos fora do castelo.
Harry e Hermione, ao voltarem no tempo, ficam assistindo suas versões passadas e percebem que podem acabar sendo pegos. Assim, Hermione joga de longe uma pequena concha, que quebra um vaso na cabana de Hagrid e assusta suas versões passadas. Com o susto, eles se lembram que têm de sair logo e escapam.
E na sequência anterior, quando estávamos acompanhando as versões do passado antes mesmo de sabermos que havia viagem no tempo, vemos a concha quebrando o vaso, mas não é explicado de onde ela veio. Só entendemos quando Hermione volta no tempo e a joga.
E o filme é cheio de elementos assim, que não fazem sentido quando você assiste na primeira vez e que são obra do Harry e Hermione do futuro, e que só vamos entender quando chegarmos na parte em que eles voltam no tempo. Esses elementos foram uma adição do filme, já que por mais que a viagem no tempo no livro também se trate de um paradoxo da predestinação, lá ela não é tão explorada assim. Hermione jogando a concha é uma adição do filme, e todas as outras ações dela e Harry no passado também.

E elas são aparentemente desnecessárias, mas enriquecem o longa de uma maneira incrível. E foi por causa desse uso que eu passei a gostar tanto do closed time loop, porque ele tem um grande potencial. Mas que infelizmente não é muito usado.
Tanto que, quando pensamos em viagem no tempo, é comum acharmos primeiro que “temos que tomar cuidado para não mudarmos nada” – o que, no paradoxo da predestinação (e nas realidades alternativas), não é nem possível. É por isso que em Endgame os personagem explicam – de maneira bem ruim, mas explicam – como funciona a viagem no tempo, porque estamos tão acostumados com a versão de Back to the Future que achamos que toda viagem no tempo é assim.
Voltando à história do início do texto, é por isso que muitos fãs de Turma da Mônica Jovem ainda ficam confusos com o Xavecão ainda existindo. Porque não entendem que não existe apenas uma maneira de se escrever viagem no tempo na ficção. Acham que é igual Back to the Future e que como ele mudou o passado, ele obrigatoriamente precisa desaparecer. Mas não é assim que funciona. Cada um escreve sua história do jeito que quiser.
Assim, essa “obsessão” das pessoas por um tipo de viagem acaba deixando de lado as teorias das realidades alternativas e do paradoxo da predestinação, que são tão interessantes quanto ou até mais que o simples “não muda o passado senão você desaparece”.
Então por causa disso são poucas histórias que realmente exploram essas outras duas teorias. E quando usam, acabam mudando no meio da história. Harry Potter mesmo fez isso. Em Prisoner of Azkaban, a viagem do tempo usada é claramente um paradoxo da predestinação. Mas na infame “oitava história”, Cursed Child, temos viagem no tempo usada novamente, mas dessa vez é possível sim mudar o passado, o que contradiz Azkaban. (Esse é um dos motivos pelos quais Cursed Child é ruim, mas está longe de ser o único.)

Então temos o loop temporal fechado, quase nunca usado e quando usado, muitas vezes deixado de lado para dar lugar a outro tipo de viagem no tempo. E como alguém que gosta muito desse tipo, mas que percebe como ele é pouco utilizado, faz sentido eu ter gostado tanto de Dark: a série é quase uma carta de amor ao paradoxo da predestinação.
Eu já falei e falo de novo, mas literalmente tudo em Dark é parte do loop temporal fechado. O ciclo é parte importante da série, os personagens ajudam a construir seus próprios passados, justamente quando estavam tentando impedi-los. Dois exemplos:
Na segunda temporada, uma versão adulta do protagonista Jonas, também chamada de Adam, envia o Jonas adolescente para o ano de 2019, em que seu pai morreu, para que evitasse a morte dele e assim todo o nó. Mas quando chega lá, é Jonas quem acaba causando a morte de Michael, e assim ele descobre que Adam o estava manipulando para que continuasse o ciclo.
E na primeira temporada, o filho do policial Ulrich, Mikkel, desaparece, junto com outras crianças da cidade. Mikkel é um caso especial, mas as outras crianças foram sequestradas pelos personagens Helge e Noah, então Ulrich assume que o mesmo vale para Mikkel.
Assim, quando ele se encontra em 1953 e conhece a versão criança de Helge, o policial tenta matá-lo para impedir que seu filho e as outras crianças sejam sequestradas. Mas ele falha, Helge sobrevive, e seus traumas causados pela tentativa de assassinato são o que o levam a sequestrar as crianças anos depois.
Assim, tanto Jonas quanto Ulrich, enquanto tentavam mudar o passado, acabaram causando-o. E isso é um tema durante a série, eles não são os primeiros a tentar. As duas primeiras temporadas e parte da terceira deixam a mensagem: é impossível mudar o que aconteceu.

Mas aí chega a última temporada. O último episódio, em especial. Adam, a versão idosa de Jonas, estava tentando acabar com o nó mais uma vez, mas falha – porque obviamente, o nó é inquebrável. Mas aí ele recebe a visita da personagem Claudia. Claudia explica para Adam que, após anos de estudo, ela descobriu que existe sim uma maneira de quebrar o ciclo e mudar os acontecimentos. Durante a série, fomos apresentados a dois mundos alternativos, com versões diferentes de cada personagem, mas também ao longo da série o número 3 foi um tema importante. Tudo na série era ligado à triqueta: sem uma terceira parte, nada está completo.
Então não é surpresa quando Claudia revela que na verdade existe um terceiro mundo: o mundo de origem. E que a origem do nó vem do relojoeiro Tanhauss, que perdeu seu filho, nora e neta em um acidente, e que passou anos tentando viajar no tempo para salvá-los. Porém, quando ele ativa a máquina do tempo, acaba dividindo seu mundo e criando as duas terras que vemos na série, que estão conectadas através do nó de eventos que se repete.
Ao descobrir isso através de Claudia, Adam manda Jonas e Martha para o mundo de origem, para que os dois impeçam o acidente do filho de Tanhauss, e assim façam com que ele nunca invente a viagem no tempo e que seu mundo nunca seja dividido.
Essencialmente, o arco do último episódio era um que já havíamos visto várias vezes. Os personagens sendo levados a acreditar que podiam mudar os eventos, que podiam quebrar o ciclo, mesmo já tendo provas diversas de que aquilo era impossível.
Jonas e Martha chegam ao mundo de origem e param na frente do carro do filho de Tanhauss, Marek, que se assusta ao ver os dois na estrada. Por um momento, somos levados a acreditar que aquilo causaria o acidente... mas não. Na verdade, Jonas e Martha convencem Marek a voltar para casa e impedem que ele, a esposa e a filha morram.

E os dois mundos desaparecem. Porque com Marek vivo, Tanhauss nunca vai inventar a viagem no tempo e nunca vai dividir seu mundo. Jonas, Martha e suas duas terras somem, deixando apenas o mundo de origem.
E isso é, no mínimo... decepcionante. Agora, não me entendam errado, eu entendo por que funcionou dessa vez, por que aqui eles conseguiram mudar os eventos e nas vezes anteriores não, porque eles estavam no mundo de origem e tudo o mais. Então não é bem uma crítica à coerência da série, porque eles conseguiram explicar a mudança muito bem.
É mais uma decepção pessoal minha mesmo, que tenham mudado os tipos de viagem no tempo no final da série, porque uma das razões pelas quais eu gostei tanto de Dark era que ela explorava o paradoxo da predestinação em todo o seu potencial, em todo o seu enredo... só pra no final eles irem contra o que estavam usando na série inteira. Não estou dizendo que foi incoerente em relação ao enredo, mas... tematicamente foi, eu acho.
E pior que nem tem tanto motivo pra chateação porque de qualquer maneira a gente ainda tem 25 episódios cheios com o loop temporal fechado muito bem explorado. É uma pena, ainda assim, que o vigésimo sexto tenha mudado o tipo de viagem no tempo. Porque sinceramente, o tipo Back to the Future já foi usado mais do que o suficiente, é hora de dar mais espaço para as realidades alternativas e principalmente para o paradoxo da predestinação, que querendo ou não é o jeito de viagem no tempo que deixa menos furos na história.
E além disso, por mais que eles tenham mudado no final, Dark é a prova de que esses paradoxos têm um potencial enorme. E eles conseguiram explorá-lo ao máximo, mesmo com o final. Agora falta que outras histórias façam o mesmo. Por mais histórias com o paradoxo da predestinação, por favor.
Comments