No Way Home é bom, mas não precisava ter pedido tantas desculpas
- Marcelo Pedrozo
- 14 de jan. de 2022
- 10 min de leitura
Crítica à maneira como Spider-Man: No Way Home (2021) corrige os supostos erros dos filmes anteriores.

Em dezembro de 2021, foi enfim lançado Spider-Man: No Way Home, filme que reuniu três gerações diferentes de franquias do Homem-Aranha em um longa-metragem só. Ele não é apenas o longa com a maior bilheteria de toda a pandemia, como também a oitava maior bilheteria da história. Não que isso importe alguma coisa porque esse dinheiro não vai pra mim nem pra você, mas o filme foi de longe o maior evento cinematográfico dos últimos tempos, e todo mundo estava falando sobre ele. Inclusive eu, que fiz dois textos e dois episódios do podcast antes de No Way Home sair conversando sobre as franquias anteriores do Homem-Aranha e comparando a atual com as antigas, além de um episódio do podcast sobre o filme em si, depois que ele saiu.
Aqui, eu vou dar continuidade aos dois textos anteriores, que eu fiz antes de o filme sair, em que eu dei minha opinião sobre a versão do personagem dentro do MCU. No Way Home praticamente me obrigou a escrever esse texto aqui, que serve quase como uma continuação dos outros dois, porque muito do filme consiste em mudar o status quo da franquia, e em “consertar” aspectos dela – o que não é um termo que eu gosto muito de usar, mas o filme claramente se vê fazendo isso.
Spider-Man: No Way Home usa boa parte de suas duas horas e meia de duração claramente pedindo desculpas por aspectos dos longas anteriores sobre os quais houve reclamações. A começar pela quase total ausência de referências ao Tony Stark, personagem que foi muito importante no passado do personagem – a ponto de o filme anterior, Far From Home, ser sobre o legado dele. Aqui, se ele foi mencionado três vezes, foi muito, e nenhuma delas é pelo Peter. Também temos Peter reforçando desde o começo do filme que é pobre, mesmo esse aspecto quase não existindo até então... e mesmo em Far From Home ele tendo ganhado de herança de um multibilionário um óculos de milhões de dólares.

Vamos falar sobre isso então. No texto passado, eu reclamei bastante sobre isso; minha única grande crítica a essa versão era justamente essa: o Homem-Aranha, personagem famoso por ser o amigão da vizinhança, por pagar boletos todos os meses, por justamente trazer essa identificação do público maior... agora é amigão de um bilionário.
Como eu já falei, em Homecoming essa aproximação fez sentido, porque o filme termina justamente com Peter recusando a proposta de Tony de se juntar aos Vingadores, após ouvir as reclamações do vilão Toomes de que esses heróis não se importam com as pessoas comuns como eles. Então, Peter decide ser apenas o amigo da vizinhança, finalmente entendendo a importância dessa posição depois de passar o filme inteiro achando que era algo menor do que ser um Vingador.
...Aí no próximo filme ele vai pro espaço, luta contra um alien roxo, ganha o traje do Aranha de Ferro e é nomeado um Vingador. O que mostra bem a dificuldade do MCU em seguir uma linha narrativa coerente, com construções importantes sendo completamente destruídas no filme seguinte. Tipo o que parece que vai acontecer com a Wanda no filme do Doutor Estranho.

Daí o próximo filme do Homem-Aranha vem logo após a morte de Tony, e então ele trata inteiramente do legado dele e de Peter ser o “próximo Homem de Ferro” e de como os dois são parecidos, mesmo Peter sendo o próprio super-herói e tudo o mais. Inclusive, ele ganha os óculos de Tony, que contêm drones assassinos que podem ser ativados para literalmente matar qualquer pessoa que o dono do óculos queira. (Quem achou que isso seria uma boa ideia?)
Em No Way Home, eu admiro a tentativa de tentar voltar às origens do personagem e afastá-lo do legado de Tony. Mas é clara a mudança de curso, que sinceramente poderia ter sido um pouco mais sutil. Peter do nada enfatizar que é “pobre” não faz nem sentido porque, no momento em que ele fala isso, mesmo que não tenha dinheiro próprio, estava dormindo no grande apartamento do ex-funcionário do Tony, cheio de tecnologia super cara, então fica estranho.
Apesar disso, eu gostei de a tecnologia Stark de Far From Home – incluindo aquele óculos assassino desgraçado – ter sido apreendida pela polícia, porque pelo menos alguma consequência teve, mesmo que a história pareça desconjuntada.
No final do filme, Peter está totalmente sozinho, sem nenhum resquício de tecnologia Stark e nenhum dinheiro, tendo que viver em um apartamento não muito bom e se virar de algum jeito para pagar o aluguel, como nas versões clássicas do personagem. Foi uma maneira bem mais natural de aproximá-lo do Homem-Aranha amigo da vizinhança do que a insistência no começo do filme de que ele é “pobre”, e eu fico feliz que agora vamos ver, finalmente, esse lado da história no MCU. Não porque eu quero que essa adaptação seja parecida com o original só por ser, longe de mim, mas porque mudar o herói do povo para um amigo de bilionário é, no mínimo, uma decisão que mostra valores não muito admiráveis.

Além dessas correções, temos algumas pequenas: uma delas foi a revelação de que o sobrenome de Michelle é Watson, como a personagem na qual ela foi baseada. Michelle Jones-Watson é a versão do MCU da personagem Mary Jane Watson, embora seja uma adaptação totalmente nova. Michelle e Mary Jane têm pouquíssimas semelhanças, mas eu já vi uma análise boa sobre como as duas representam a mesma coisa, cada uma em sua época, em seu contexto, já que uma Mary Jane parecida com a dos quadrinhos não funcionaria, porque a personalidade dela não significa a mesma coisa nos dias de hoje que significava nos anos 60.
Então eu nunca liguei para as reformulações na personagem, assim como nunca liguei para as reformulações do Flash, que também é totalmente diferente mas ainda cumpre a mesma função de ser o bully, só que adaptada aos dias de hoje. O problema é que, com MJ, eles mudaram o nome da personagem também, mantendo apenas seu apelido. Isso sempre soou para mim como um sinal de que tinham vergonha e não queriam admitir que ela era uma adaptação de Mary Jane, com medo das reações do público, e aí com um nome diferente podiam fingir que era uma personagem nova com um apelido familiar que fazia referência à personagem clássica. O que levou várias pessoas a acharem que a “Mary Jane de verdade” apareceria no futuro, o que é sem noção demais.
Então, eu fico feliz com essa correção de curso: Michelle tem o mesmo sobrenome de Mary Jane – embora não goste de usá-lo –, admitindo que, sim, ela é uma adaptação dela. Vendo o filme pela primeira vez eu fiquei muito feliz com essa revelação, vocês não têm noção.

De alterações pequenas, também tivemos a personagem Betty Brant, que nos quadrinhos – e na trilogia clássica – trabalhava no jornal Clarim Diário com Peter, e que no MCU até então era uma colega de classe que participava do telejornal da escola. Para No Way Home, foram feitas propagandas com Betty no TikTok começando um estágio no Clarim Diário – que, nessa versão, é um site de notícias controverso em vez de um jornal impresso –, e cobrindo os eventos do filme, deixando-a mais parecida com sua versão original.
Por fim, temos a grande alteração do filme: a personagem da tia May e o que ela significa para essa versão. Os longas anteriores deixavam implícito que a origem clássica de Peter Parker havia acontecido algum tempo antes, mas que não iam mostrá-la novamente porque já a havíamos visto diversas vezes. Contudo, a alergia que eles pareciam ter a mencionar qualquer coisa dessa origem, especialmente o tio Ben, sempre foi estranha para mim, então No Way Home tenta “consertar” as coisas mais uma vez. Nessa versão, a “morte do tio Ben” acontece alguns anos após Peter se tornar o Homem-Aranha, em um contexto bem diferente, e com a tia May, em vez de com Ben. Inclusive, nem sabemos se existe de verdade um tio Ben aqui, e sinceramente eu prefiro até que não exista.
May era de longe uma das maiores reclamações do público sobre essa nova trilogia. A personagem era radicalmente diferente de sua versão clássica, sendo consideravelmente mais nova (enquanto a May clássica é uma idosa, aqui sua intérprete, Marisa Tomei, tem pouco mais de 50 anos, embora pareça mais jovem). Sobre como ela foi mostrada em Spider-Man: Homecoming, eu acho as críticas extremamente injustas, porque naquele filme ela é ótima. May continua sendo a tia preocupada com Peter, tendo uma ótima cena desesperada com os sumiços dele. Porém, ela era mais que isso: May ser mais jovem permitiu que uma amizade maior fosse construída entre os dois, e ela era amiga de Peter além de ser sua mãe. Então tivemos cenas brilhantes como ela ajudando ele com conselhos amorosos e os dois vendo um tutorial no YouTube de como dar nó na gravata.

Essa sequência é ótima.
Ah, e o filme termina com May descobrindo que Peter é o Homem-Aranha.
Em Far From Home, as reclamações são mais justas. May começa o filme participando de um evento beneficente que arrecadava dinheiro para pessoas que perderam a moradia com o estalo de Thanos – provavelmente uma maneira do filme de se ligar com os eventos de Avengers: Endgame, mas que depois ganharia um novo contexto em No Way Home. No resto do longa, porém, ela é resumida a seu novo e “engraçado” relacionamento com Happy Hogan, e tem pouquíssimas cenas mostrando sua relação com Peter ou algo mais interessante que isso. Inclusive, nenhuma vez o fato de que agora, pela primeira vez na história cinematográfica do Homem-Aranha, ela explicitamente sabe sua identidade secreta, é aproveitado. Ela tá sempre de boa, sem se preocupar ou sem sabermos como ela se sente em relação a isso.
Homecoming pode tê-la utilizado de um jeito cômico em boa parte de suas cenas, mas pelo menos utilizou essa comédia para construir a relação dela com Peter. Far From Home só jogou ela pro canto mesmo; se ela não estivesse no filme, não ia mudar nada.
Já No Way Home, em sua tentativa de consertar o que tinha de errado, reformula completamente a personagem. Peter menciona de relance que, quando May descobriu que ele é o Homem-Aranha, foi uma experiência horrível que ele não quer repetir; uma clara tentativa de corrigir o desperdício que fizeram com relação a essa trama. Além disso, descobrimos que ela tem toda uma filosofia de vida sobre ajudar as pessoas e um código moral forte, trabalhando na caridade F.E.A.S.T. e incentivando Peter a salvar os vilões.
Duas cenas ótimas me vêm à mente sobre essa “nova personalidade” de May: primeiro, no começo do filme, quando ela está sendo interrogada após o mundo descobrir que Peter é o Homem-Aranha, e é acusada de abuso de incapaz por apoiar as atividades heroicas do sobrinho. Eu gosto dessa cena, porque, mais do que um comentário aleatório do Peter sobre “ela ter demorado para aceitar que ele é o Homem-Aranha”, ela já revela um conflito interno em May, fazendo com que nos perguntemos por que, afinal, ela está tão de boa com isso.

E a revelação vem depois, apropriadamente no abrigo F.E.A.S.T., quando um dos vilões, Norman, entra, procurando pelo Homem-Aranha. Peter quer enviar todos de volta para seus universos, sem se importar em ajudá-los, mas May diz que ajudar as pessoas “é o que eles fazem”. Depois, quando a personalidade obscura de Norman, o Duende Verde, aparece, ele tenta corromper Peter, falando que “viu como May o prendeu lutando sua santa missão moral”. Essas falas nos preparam para que, quando May assuma o lugar de Ben como mentor moral de Peter, soe natural.
E sinceramente? Apesar de claramente ser uma adição tardia à personagem, funcionou para mim. Não estranhei em nenhum momento quando os vilões atacaram e, contra o desejos de Peter, ela não fugiu, e em vez disso pegou a fórmula do Duende Verde e tentou curá-lo. E, quando Peter implorou que ela saísse do caminho para não ser atacada, ela não saiu, preparada para enfrentar Norman para salvar Peter. Não estranhei também quando, mesmo machucada, ela insistiu que eles haviam feito a coisa certa ajudando os vilões. Não estranhei quando ela repreendeu Peter por dizer que isso não é responsabilidade dele: “Peter, me ouça. Você tem um dom. Você tem poder. E com grandes poderes devem vir também grandes responsabilidades”.
Vendo no cinema pela primeira vez, essa cena arrancou uns suspiros do público, que começava a entender que, não, esse Peter ainda não tinha tido uma morte do tio Ben em sua vida, e que ela estava prestes a acontecer.
Mesmo sendo uma adição tardia à personagem e mesmo que eu fique triste que ela não tenha vindo antes, não pareceu estranho para mim. Foi tão bonito ver Happy no final, olhando para sua lápide, dizendo “Dói porque eles se foram e dói de novo porque você lembra do que eles defendiam, e pensa será que isso tudo se foi também?” e ver Peter respondendo “Não, isso não se foi; todos que ela ajudou, eles vão manter vivo”.

E por mais que muitos digam que, apesar de apreciarem a ideia dessa tia May que é o centro moral do Peter, não conseguem sentir a morte dela porque ela nunca foi muito bem utilizada... revejam Homecoming, por favor, ela é excelente naquele filme mesmo que não seja por esse viés. A amizade dela com o Peter lá é linda e o mais trágico da morte dela é que cenas como aquelas nunca vão se repetir.
Então, para finalizar, por mais que eu sinta que a transformação da tia May tenha sido feita da melhor forma possível, quando você junta ela a todas as outras correções que esse filme faz, fica claro que No Way Home está pedindo desculpas por várias coisas e isso deixa um gosto ruim na minha boca. Por mais que eu goste de algumas das correções (gosto de quase todas, para falar a verdade), esse sentimento de que ele pede desculpas é triste porque, apesar de tudo, eu adoro os dois filmes anteriores e não sinto que eles sejam algo que o MCU tem que pedir desculpas por ter feito. Homecoming, inclusive, é meu filme favorito do MCU.
Então eu fico triste que o filme ganhe seus maiores elogios pelo que ele “conserta” da franquia até então, e que muitos digam que seus maiores méritos foram corrigir os erros de Homecoming e Far From Home. Não que ele não o faça, mas porque esse tipo de discurso diminui os dois longas, que, apesar de um ou outro problema, são uma adaptação do Homem-Aranha válida como qualquer outra.

E eu fico feliz de verdade que essa trilogia tenha existido. Uma trilogia mais leve, com mais comédia, que tenha repaginado os personagens para que fizessem sentido no século XXI, que tenha adaptado o Homem-Aranha nesse cenário de comédia adolescente. Era um tom que não podia durar para sempre, porque a tragédia está no cerne do Homem-Aranha, então eu estou empolgado para ver esse Peter com um tom mais sério e dramático. Estou empolgado para o futuro, mas o passado merece carinho também. Essa trilogia foi uma adaptação muito bem-vinda do personagem e No Way Home não precisava ter pedido desculpa por ela.
Até porque convenhamos que os vilões dessa trilogia são os melhores do Homem-Aranha no cinema.

PS.: Não tem muito a ver com esse texto, mas eu acho que vale a pena mencionar aqui que, revendo a trilogia do Sam Raimi em preparação para No Way Home, eu acho que fui injusto com a Mary Jane no texto passado. Digo, ela ainda é um dispositivo de roteiro em muitas partes daqueles filmes, mas ela também tem um arco interessante, só que mais sutil. Ele ainda é meio duvidoso porque é basicamente “o pai e os dois ex trataram ela mal então ela se apaixona pelo amigo que é o único que trata ela bem”, mas ela é bem mais complexa do que eu achava.
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