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O que faz uma boa adaptação?

  • Foto do escritor: Marcelo Pedrozo
    Marcelo Pedrozo
  • 25 de jun. de 2021
  • 16 min de leitura

Uma contestação à tese de que a qualidade de uma adaptação é medida por sua fidelidade com o original, através de obras como remakes em live-action da Disney, A Series of Unfortunate Events (2017-2019) e Turma da Mônica Jovem (2019-).

Não é nada incomum ouvir a seguinte frase sobre um filme: “É um bom filme, mas não é uma boa adaptação”, o que geralmente significa que ele funciona como um filme sozinho, mas que mudou elementos demais em relação à obra original, e por isso não é tão bom. E eu sempre achei essa frase curiosa, porque ela diz que as mudanças feitas fazem com que não seja uma boa adaptação... e que portanto a qualidade de uma adaptação deve ser medida pela fidelidade com o original... mas é isso mesmo?


A palavra adaptação, segundo o dicionário, significa “ajuste de uma coisa a outra” ou “utilização de qualquer objeto ou utensílio para finalidade adversa de seu uso primitivo”. Ou seja, é uma palavra intrinsecamente ligada ao conceito de mudança, é essencialmente mudar algo para que caiba em outro lugar. A própria adaptação dos seres vivos, por exemplo.

Então se a palavra adaptação significa mudança... por que medimos o valor de um remake na fidelidade com o original? Pela lógica, seu valor deveria ser medido a partir de como ele conseguiu ajustar a obra para que coubesse nesse novo lançamento, e não do quão fiel ele foi.


Ou seja, ao falar que foi “um bom filme”, automaticamente se diz que é uma boa adaptação, não? Porque se você pega uma história que veio de um livro, e precisa fazer um filme com ela, são mídias diferentes. E se no final você conseguiu fazer a história se encaixar como um filme também, que não é como ela foi pensada originalmente... então é porque a adaptação foi boa, não?


Não é o que muita gente acha. Se o filme mudou várias coisas do livro, se fez mudanças na história, então não é uma boa adaptação, mesmo sendo um bom filme, segundo essas pessoas. O que, mesmo ignorando o conceito da palavra adaptação, é uma frase extremamente bizarra que ignora o fato de que... se o filme conseguiu ser bom... qual é exatamente o problema?


Nós, como fãs de uma determinada obra que vai ser adaptada para outra mídia, queremos ver como ficarão os momentos e elementos que mais gostamos. Especialmente falando de livros para mídias audiovisuais, afinal, queremos enxergar de verdade como seria tal cena do livro. E, se aquele elemento não aparece no filme/série, ou é mudado, nós ficamos decepcionados, afinal, e aquela coisa que a gente queria tanto ver? Eu esperei tanto, e aquilo não estava lá?

Os fãs de Harry Potter podem ter ficado irritados que o Pirraça não apareceu nos filmes. Ou que o funeral do Dumbledore foi cortado. Ou que o Dumbledore não perguntou calmamente ao Harry se ele colocou o nome no Cálice de Fogo. Ou que todo o movimento político da Hermione a favor dos elfos domésticos não estava nos filmes. Nem a aparição dos pais do Neville no hospital.


Nada disso estava lá, e é óbvio que muita gente vai se decepcionar. Eu mesmo me decepcionei com alguns dessa lista, eu queria muito que os pais do Neville aparecessem na cena do hospital em Order of the Phoenix, porque essa cena é ótima, ela é triste, revela o passado trágico do Neville, amplifica a complexidade do personagem dele e faz com que suas conquistas seguintes na história tenham maior significado.


No filme, há apenas uma pequena menção ao passado dos pais de Neville, em uma cena mínima, quase esquecível. Ele conta a Harry uma versão condensada da história deles, e Harry diz que ele os deixará orgulhosos, e é isso. E realmente, é decepcionante, eu fiquei triste com o filme por não ter colocado a história toda lá.


Então, esse texto é menos eu contra a decepção que vem de o elemento ter sido cortado/mudado, porque é um sentimento válido que eu tenho muitas vezes, e mais eu defendendo que, mesmo com essa decepção, isso não afeta a qualidade da obra. É menos sobre “gostou ou não” e mais sobre “é bom ou não”.


Então deixa eu falar de Turma da Mônica Jovem.

Sobre escolher um caminho diferente (Turma da Mônica).


Em 2019, saiu a série animada baseada na revista da Turma da Mônica Jovem. A revista foi lançada em 2008, então, a série animada já era algo que os fãs esperavam havia onze anos. E as aparições dos personagens em um piloto de 10 minutos e em alguns pequenos vídeos de conscientização só aumentavam a expectativa, que já era grande.


E muita gente tinha uma expectativa bem específica: queriam que a série adaptasse a revista diretamente, uma edição por episódio, e seguisse a linha cronológica de lá. Queriam ver as histórias que tanto gostaram nos gibis, agora em formato animado.


E isso teria sido ótimo. Mas não foi isso o que aconteceu, e pra falar a verdade, que bom que não foi.


A animação da Turma da Mônica Jovem escolheu um caminho bem diferente. Um caminho de histórias mais curtas, com episódios de mais ou menos dez minutos, enquanto a revista tem 120 páginas. E esses episódios não adaptavam diretamente as histórias do gibi. Alguns tiravam inspiração de histórias específicas, mas pegavam o enredo básico e construíam sua própria história a partir disso – mas a maioria, até agora, foi de histórias completamente novas.


E não só isso. O tom das histórias mudou de maneira considerável. Enquanto a revista transita quase que igualmente por edições de cotidiano e de fantasia, a animação se mostrou extremamente focada no cotidiano dos personagens, um slice-of-life mesmo. Os episódios focam em problemas da escola, de romances, inseguranças... Eles são, inclusive, mais “realistas” que as edições de cotidiano da revista, tomando certas liberdades criativas por se tratar de outro universo.


O único dos treze episódios lançados até agora que utilizou algo fantástico em seu enredo até ajuda a provar meu ponto: em Maga Magali, Magali insiste aos amigos que sua tia Nena é uma bruxa, mas ninguém acredita nela – nem mesmo Mônica, Cebola e Cascão. Mas na revista, os três, e toda a turma na verdade, sabem muito bem que magia existe e já encontraram bruxas e muitos outros seres fantásticos; na animação, eles não acreditam em nada disso. Então, Maga Magali ajuda a provar que essa é uma história diferente; uma história mais realista.

Também é uma história diferente com relação ao romance de Mônica e Cebola. Na revista, o arco do namoro deles foi cheio de brigas, mal-entendidos, imaturidade, até que eles pudessem realmente ter um namoro saudável. Tivemos um Cebola arrogante e uma Mônica difícil de se lidar, que tiveram que amadurecer para ficarem juntos.


Mas na animação, a coisa é diferente. Cebola gosta de Mônica, e isso é evidente desde o primeiro episódio, mas aqui ele, apesar de arrogante, é tímido, não sabe muito bem como expressar seu sentimento, não tem coragem de se declarar. E enquanto na revista é óbvio que os dois se gostam, na animação os outros personagens ficam extremamente surpresos ao ouvirem falar da remota possibilidade desse sentimento. A história ainda não concluiu, mas até agora foi algo bem diferente.


E... tudo bem. Eu não iria reclamar se a animação fosse uma adaptação direta de cada revista, seguindo o enredo certinho, mas a verdade é que essa história já foi contada. Seria legal se ela fosse contada de novo, agora como audiovisual? Óbvio. Mas também é legal explorar outra possibilidade, um caminho novo, que não seria possível se seguissem os quadrinhos.


E enquanto falamos de Turma da Mônica, dá pra falar também sobre Turma da Mônica: Laços, o filme de 2019 baseado na graphic novel de 2013. Nesse texto sobre o filme, eu já falei um pouco sobre as diferenças entre um e outro. A criação de todo um arco sobre a importância da amizade, que o Cebolinha tem que entender, é uma dessas diferenças. (Digo, a graphic obviamente é sobre amizade também, mas o filme aborda de um jeito mais explícito esse tema ao dar um arco para o Cebolinha aprender a sua importância. Mas eu falei mais sobre isso nesse outro texto.)

Tem também a adição da cena do Louco, das participações da Cremilda e Clotilde, do Quinzinho, um arco maior para os pais (especialmente os do Cebolinha)... Mas tá, essas foram mudanças aditivas, que não tiraram nada da graphic. Mas houve também elementos que foram removidos.


Um deles é o das fantasias. Na graphic, no plano infalível do começo da história, Cebolinha e Cascão usam uma fantasia de Peter Pan e Capitão Gancho, para convencer Mônica a ir à Terra do Nunca – no caso, para pegar o Sansão. Essa é a primeira cena deles, inclusive. No final, essas fantasias voltam a participar, com eles as usando contra o Homem do Saco, e com a própria Mônica participando, usando uma fantasia de ratinho fingindo ser a Wendy.


Esse é um elemento que eu gosto muito da graphic (digo, eu gosto de tudo dessas graphics, então não é uma surpresa), e que é bastante relevante na história. Inclusive, o título da história era para ser Meninos Perdidos ao invés de Laços, em certo ponto do desenvolvimento, o que mostra a importância dessa intertextualidade.


Mas... as fantasias não estão no filme. E eu fiquei chateado a princípio, era um elemento que eu gostava e que queria ver em live-action. Mas depois eu fui entender por quê: segundo o diretor Daniel Rezende, as fantasias foram removidas porque eles não queriam que nossa introdução aos personagens fosse na forma de Peter Pan e Capitão Gancho, até porque o filme acaba atingindo um grande público que talvez nem conheça os personagens. Então era importante que eles estivessem lá como eles mesmos. E aí esse elemento saiu da história.


E, bom, que pena, seria legal. Mas isso de maneira nenhuma tira mérito do filme. A mudança faz sentido, e no final foi melhor assim. O fato de que as fantasias eram importantes na graphic não importa aqui, porque o filme não é a graphic. Ele é uma história nova. E nada disso tira o mérito da graphic, ela ainda está lá, ela ainda é uma história incrível assim como o filme é uma história incrível. E são histórias diferentes. Cada uma com sua particularidade.


E como eu acabei de falar, a graphic ainda está lá, ela não sumiu. Deixa eu falar disso então.

Calma, a obra original não vai sumir (Disney).


Uma reclamação extremamente comum sobre qualquer tipo de mudança em adaptação é que vai “estragar a obra original” – ou, em determinados casos... que “vai estragar a minha infância”. Essas reclamações são de longe as mais injustas, na minha visão, porque... elas não se sustentam. Como algo vai estragar sua infância se ela já passou?


Eu poderia falar mais de Turma da Mônica e do pessoal que se irritou com o Cascão lavando nas mãos na propaganda de prevenção para o coronavírus ano passado, porque “ah, acabou a minha infância!!!!”. (O que não faz o mínimo sentido, porque o Cascão já lavou as mãos várias vezes no passado, mas enfim.)

Mas vamos focar nas adaptações, que são o tema do texto. E em um tipo muito relevante de adaptações: os remakes em live action que a Disney vem fazendo de seus filmes animados. Tem um episódio do podcast dedicado a isso, ouçam aqui.


Desde o começo da década de 2010, a Disney vem pegando seus filmes famosos de animação e transformando-os em versões live action com uma frequência absurda. Só em 2019, foram CINCO ao total (no caso, Dumbo, Aladdin, The Lion King, Maleficent: Mistress of Evil e Lady and the Tramp). E, bom, existe todo um debate sobre como isso é ruim porque privilegia remakes em vez de obras originais, e, bom, é uma discussão relevante.


Mas existe outra discussão, que é: esses live actions devem ter mudanças? E como classificá-los em relação a essas mudanças? Alguns não seguem a obra original, apenas pegando seus personagens e contando sua origem ou uma continuação da história, como Cruella e Christopher Robin. Outros seguem a história original, mas sob outra perspectiva, como Maleficent. Alguns seguem a história original, ainda sob a mesma perspectiva, mas com várias mudanças, como Mulan e Cinderella. E outros parecem um copia e cola do original, ao menos nos elementos superficiais, como Aladdin, Beauty and the Beast e principalmente The Lion King.


E muitas pessoas vão preferir um tipo a outro, como eu mesmo prefiro. Mas a verdade é que, na internet, a maioria – ou, no mínimo, a minoria vocal – tem uma opinião formada, que é a de que os melhores são os que têm menos mudanças. Isso é exemplificado pelas reações ao anúncio das mudanças que Mulan ia fazer, retirando as músicas, mudando os personagens, e retirando alguns deles, especialmente o dragão Mushu.

E não foram poucas as reclamações, dizendo que isso ia “estragar minha infância”. E como eu falei, esse argumento é péssimo, sua infância ainda está lá. Ninguém está tirando o Mushu de lugar nenhum, nem voltando no tempo para apagar suas memórias com ele, nem “mudando” o filme original, ele ainda está lá, você pode dar play na animação e assistir. O live action é um novo filme, um que está sendo lançado anos depois da animação, ele não vai interferir na sua experiência com o original. Ele não eliminou o Mushu da existência, calma aí.


Muitas pessoas agem como se o lançamento do remake invalidasse todos os elementos do original que o remake excluiu, mas ele não invalida nada. Ele é uma nova história, e as duas podem coexistir. Você não gostou das mudanças? Ok, vai assistir a animação, você ainda pode fazer isso! Ninguém está te proibindo não, relaxa.


(E que venham mais live actions com mais mudanças porque o que menos mudou foi The Lion King e ele é o pior da lista por uma margem nada pequena.)


Além do mais, essas mudanças acontecem não só porque tal elemento não encaixaria, ou simplesmente para tentar algo diferente; elas também acontecem porque o remake muitas vezes tem uma proposta completamente diferente do original; é uma história parecida, mas as entrelinhas são outras. Com Mulan, por exemplo. Não faria sentido ter o Mushu ou as músicas, porque o tom do filme é bem diferente, e bem mais sério, do que a animação.

Diferenças temáticas (A Series of Unfortunate Events).


E isso acontece várias vezes. Uma história na versão original pode ter um tema específico, mas quando ela é adaptada, geralmente esse tema vai mudar. Pode ser deliberadamente, porque o novo autor tem outra coisa para contar ou quer mesmo é subverter os valores do original. Pode ser também porque o autor nem percebeu que o original defendia tal tema e colocou sem querer suas próprias crenças ali. Mas como quase sempre são pessoas diferentes fazendo cada um, a diferença temática existe, porque cada um acredita em uma coisa e vai usar aqueles personagens e aquele enredo para falar uma coisa.


Nos livros de A Series of Unfortunate Events, um dos maiores temas é o da ambiguidade moral. Existe uma alegoria bastante importante na obra, que é a de que pessoas são como “saladas do chef”, são complexas, não apenas boas ou más. E isso é mostrado muitas vezes nos livros finais, especialmente em The Carnivorous Carnival, através da personagem Olivia Caliban.


Ela é uma personagem que não está de um lado ou de outro do conflito maior da história, ela genuinamente só tem um objetivo: fazer as pessoas felizes, dar a todos o que querem. Mas nisso, ela acaba fazendo escolhas controversas, ao mesmo tempo em que ajuda os protagonistas, os Baudelaire. Ela conta para eles bastante sobre a organização VFD, e decide ajudá-los a escapar, mas também concorda em ter um espetáculo em que seus contratados serão devorados por leões, além de delatar os Baudelaire para o assassino que queria encontrá-los, Olaf.


Então Olivia Caliban, nos livros, é uma personagem extremamente dúbia, que servia justamente para reforçar esse ponto da história.

Mas e na série? Na série ela não é nada disso.


Em vez de ser uma falsa vidente que vive no Parque Caligari desde sempre, Olivia é uma ex-bibliotecária que passa a segunda temporada inteira tentando ajudar os Baudelaire. Ela chega ao parque pouco antes deles, disfarçada de vidente para ajudá-los. Olivia então enrola Olaf, e quase consegue libertar os órfãos dele para sempre, mas no fim é assassinada por ele, jogada para os leões. No livro ela também é, mas acontece de uma maneira diferente, porque, bem, a Olivia é uma personagem diferente.


São, de verdade, duas pessoas completamente opostas, apesar de seu papel na história ser teoricamente o mesmo, a Olivia da série ainda faz muitas coisas que a Olivia do livro faz, mas por razões e com intenções bem distintas. E isso não é simplesmente um “caminho diferente”, como eu falei na seção da Turma da Mônica, é uma diferença temática profunda.


Porque por mais que a série ainda utilize o tema da “salada do chef” e da ambiguidade moral, ela não dá tanto valor a ele quanto os livros dão, ele tem um papel menor no geral. A Olivia da série não está lá para representar as pessoas dúbias, que têm bem e mal dentro delas... ela está lá para representar que nós devemos sempre fazer a coisa certa.


Suas últimas palavras são “Eu sou uma voluntária”, enfrentando Olaf para que os Baudelaire fujam, e sendo então brutalmente assassinada por ele. Olivia na série é um exemplo moral, ela é uma das melhores personagens eticamente falando, isso se não for a melhor. Totalmente diferente dos livros...


...e tudo bem. Ela é uma personagem diferente porque serve a uma função diferente, porque a série trabalha um tema diferente. O contexto é que devemos procurar sempre escolher o certo, que é um tema tão válido quanto a dubiedade moral do ser humano, mesmo que diferente. A série utiliza, então, um enredo quase igual ao do livro, para explorar um outro tema, praticamente oposto ao que o livro explora. E tudo bem, porque são obras diferentes.


Inclusive, essa diferença temática dá para ser comentada com relação ao filme de A Series of Unfortunate Events, que, diferente da série, só chegou a adaptar os três primeiros livros. Como já foi amplamente discutido pela internet, o filme é muito mais otimista que livros e série, apesar de mais sombrio também. Nele, os personagens estão vivendo uma tragédia, mas sempre conseguem se manter otimistas, e a mensagem é de certa forma feliz. Inclusive, na última cena, o narrador comenta como os Baudelaire são pessoas felizes.

Mas esse otimismo do filme não existe nos livros e série, que são extremamente cínicos, especialmente os livros. As coisas ruins acontecem, talvez não com tanto impacto porque os livros têm bastante comédia, mas essa comédia e esse absurdo que é o mundo onde os personagens vivem são usados para justamente marcar esse cinismo, de que nada de bom acontece e que esses três órfãos vão sofrer para sempre.


A série então decidiu se aproximar mais do livro tematicamente (na medida do possível), enquanto o filme optou por um outro caminho. E, bem... tudo bem! Como eu já falei na seção sobre a Turma da Mônica, já temos o original de um jeito, por que não tentar de outro?


Sobre isso aliás, vale comentar outra diferença interessante entre as versões dessa franquia, que é em um ponto do penúltimo livro/episódio, The Penultimate Peril. Nesse ponto do enredo, há um incêndio em um hotel onde estão praticamente todos os personagens da história, e não sabemos quem sobreviveu ou não. No livro, Justice Strauss é uma das únicas que eu tenho certeza de que morreu mesmo – ela estava no telhado quando a vimos pela última vez, em uma cena ótima em que os Baudelaire recusam a ajuda dela e fogem, o que tematicamente simboliza sua entrada naquele mundo; eles finalmente entenderam como as regras funcionam, e que confiar nos adultos só vai levar a sofrimento. É triste quando Sunny, a bebê, morde a mão de Strauss para que ela os solte e eles possam fugir, mesmo com os apelos da juíza para que fiquem e confiem na lei, e aí ela fica lá sozinha no telhado enquanto o prédio pega fogo. De longe a morte (porque ela com certeza morreu) mais emocionante dos livros.


Mas na série, Justice Strauss é na verdade a única personagem que confirmadamente sobreviveu. Ela é mostrada depois do incêndio, triste porque sua busca pelos Baudelaire acabou tragicamente. Chega então Lemony Snicket, o narrador da série (que é também um personagem). Ele está prestes a iniciar sua própria busca pelos Baudelaire (e, assim, escreve os livros que estamos lendo), e nessa cena, Strauss dá uma foto que tinha dos órfãos para Snicket, simbolizando que ele agora vai assumir a pesquisa dela.


São duas propostas interessantíssimas. Eventos diferentes para um mesmo enredo, cada um contando muito bem a história que cada obra pede. Que bom, então, que podemos ter acesso às duas versões; teremos a nossa preferida, mas é bom também ter a outra ali para quando quisermos algo diferente. Que bom que existem várias opções, afinal.


E falando sobre versões preferidas...

Qual é melhor? (Harry Potter e Percy Jackson).


Não, essa parte não vai ser sobre decidir se Harry Potter é melhor do que Percy Jackson, não viajem.


As duas obras estão aqui como exemplos para um debate interessante, que é: qual é o melhor? A adaptação ou o original? Existe uma regra?


Chuto que a grande maioria das pessoas responderia que o original é melhor, sempre. Quando perguntam: “filme ou livro”, a resposta é sempre que o livro é melhor, afinal, é o original (na maioria das situações). E quem prefere o filme ou nunca leu o livro é muitas vezes visto como menor na discussão por causa disso.


E essa discussão tem um ponto válido, óbvio. Afinal, o livro, ou, mais amplamente falando, a obra original... foi a obra original, afinal de contas. A criação daquele universo, daquele contexto, está naquele primeiro conteúdo, e é importante saber de onde aquilo tudo veio.


Mas ao mesmo tempo, também é problemático que essas versões sejam vistas como as-versões-sagradas-intocáveis-que-são-perfeitas-porque-são-as-originais, porque esse ponto de vista invalida o que as adaptações podem trazer de bom também. Nem sempre você vai preferir a obra original, e... não é nenhum crime, mesmo que muita gente ache que é. A adaptação pode ser tão boa quanto ou muito melhor que o original. Pode ter trazido novas ideias e trabalhado certos temas de maneira mais eficiente, ou pode simplesmente ter tocado você mais.


Óbvio, nada vai tirar o mérito do material que trouxe aquilo tudo pela primeira vez. Os livros de Percy Jackson merecem esse reconhecimento de terem sido os primeiros a contarem aquela história, e de a história ter nascido ali. Mas isso não significa que você não possa preferir o Hades como vilão do que o Cronos, como acontece no primeiro filme. É diferente do livro, é diferente da versão original! Mas e daí, o original não é o sagrado, mesmo que tenha o mérito de ser o original. Ele não é necessariamente melhor por causa disso. Não que eu prefira a versão do filme... nesse caso.

Em Harry Potter, eu comentei no texto sobre viagem no tempo que o que criou meu interesse por um tipo específico de viagem foi a criatividade com que ela é usada em Prisoner of Azkaban... mas só no filme. A viagem no tempo no livro é bem básica, e quase inconsistente, às vezes. Na minha opinião, o filme faz um trabalho muito melhor nela, dando pistas maiores antes de ela acontecer e aproveitando melhor as possibilidades que esse elemento traz, realmente explorando todas as alternativas e não deixando uma oportunidade passar. O livro não traz isso, e eu prefiro muito o filme nesse quesito.


E não tem problema! Sério, dá pra preferir o filme, de boa. O livro vai ser sempre o original e vai ter sempre esse mérito, mas... o filme acertou mais, nessa questão, e tudo bem eu admitir isso.


E mesmo em adaptações como os filmes de Percy Jackson em que a adaptação é pior (na minha opinião), não é por isso que ela não é válida também. Eu prefiro o livro, mas como eu já cansei de falar, que bom que temos o filme diferente também, é um outro caminho, que pode não ser melhor, mas que pelo menos é algo novo, é uma visão diferente da história.


Eu valorizo muito mais os live-actions de Mulan e Maleficent, mesmo que não ache eles tão bons, do que um The Lion King da vida que foi a coisa menos imaginativa que a Disney já produziu.


(E um PS porque eu não consegui encaixar isso no texto organicamente: caras pessoas que reclamam da falta de fidelidade dos live actions da Disney, é direito de vocês preferir coisas parecidas com o original... mas acho curioso que eu nunca vi vocês pedindo pras animações serem fiéis aos contos de fada e clássicos da literatura em que elas foram baseadas... Vocês sabem que o Mushu não existe na lenda da Mulan original... não sabem? E que portanto tirar ele é deixar a história tecnicamente mais fiel ao original... não sabem?)

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