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WandaVision, escapismo e o American Way of Life

  • Foto do escritor: Marcelo Pedrozo
    Marcelo Pedrozo
  • 29 de abr. de 2022
  • 8 min de leitura

Análise da maneira como WandaVision (2021) aborda a relação pouco saudável da personagem Wanda com entretenimento, desde um escapismo excessivo até a internalização de propaganda americana.

Antes que Doctor Strange in the Multiverse of Madness estreie e potencialmente destrua todo o arco de personagem da Wanda construído tão bem em WandaVision, eu decidi escrever esse texto para falar um pouco dessa série, que é de longe uma das produções mais complexas e bem construídas da Marvel Studios, mas que, a exemplo de outro projeto um pouco mais profundo como Eternals, um ou outro defeito de roteiro geralmente a tira das listas de favoritos de muitas pessoas, que acabam dando preferências a projetos como Ant-Man and the Wasp ou Black Widow, os quais não têm defeitos tão aparentes mas são extremamente genéricos e não estão ali para dizerem nada.


WandaVision é um dos únicos projetos da Marvel que definitivamente quer dizer alguma coisa, e que trabalha tema e personagem de uma maneira que muitos filmes e séries do MCU não fazem. (Tipo, o que Thor aprendeu em The Dark World? O que The Avengers tava ali pra dizer? Sei lá, eles só lutaram contra um vilão aleatório e deu.) Essa série explorou a forma como muitos de nós lidamos com o luto e fez da Wanda, que antes era uma secundária aleatória, a personagem mais complexa do MCU, em um arco que eu estou rezando para não ser destruído na próxima aparição dela, mas que provavelmente vai ser.


A premissa da série é que Wanda Maximoff e seu namorado, o robô Visão – que até onde sabíamos, estava morto – estão de alguma maneira vivendo em uma realidade de sitcoms antigas, na qual estão casados e não parecem se lembrar muito de seu passado, vivendo histórias simples com risadas de fundo e personagens exagerados. Logo descobrimos que esse canto do mundo foi na verdade tomado pelos poderes de Wanda, que, em seu luto, subconscientemente liberou vários feitiços que prenderam os cidadãos da cidade de Westview em uma fantasia na qual todos cumpriam seus papéis de personagens na sitcom “WandaVision”. É apenas com a intervenção de Monica Rambeau, com as desconfianças do próprio Visão criado pela magia de Wanda e com as intenções malignas de Agatha Harkness que Wanda percebe o que está fazendo, e, após alguns episódios de hesitação, acaba com o feitiço e sacrifica o marido e os filhos que havia criado com magia para por fim ao sofrimento dos moradores de Westview.

Seis dos nove episódios da série são baseados diretamente em sitcoms específicas de diferentes eras, começando pelos tipos de I Love Lucy e The Dick Van Dyke Show no primeiro episódio, ao estilo dos anos 50. A série então avança para os anos 60, 70 e assim por diante, ao mesmo tempo em que a verdadeira história começa a surgir nas entrelinhas e fica cada vez mais evidente.


Assim, WandaVision é uma homenagem às sitcoms americanas, utilizando diversas referências em seis paródias que celebram o gênero e a história da televisão estadunidense, de maneira ironicamente apropriada para essa que é a primeira série da Marvel Studios. Contudo, apesar de os episódios tecnicamente se tratarem de homenagens, as sitcoms não são inseridas de maneira acrítica, e seus estereótipos datados e a relação pouco saudável que podemos ter com elas são apontados diversas vezes.


O enredo da série vem justamente da relação de escapismo que Wanda tem com essas sitcoms. No episódio 8, descobrimos que esse era um costume seu e de sua família sokoviana (Sokovia, um país do leste-europeu fictício do universo Marvel): assistir a sitcoms americanas para treinar seu inglês. Era isso que eles estavam fazendo quando um ataque matou os pais da personagem. Assim, durante toda a sua vida incrivelmente trágica, as sitcoms acompanharam Wanda: por exemplo, elas estão com ela no despertar de seus poderes na organização terrorista Hydra e durante o período de luto por seu irmão Pietro, já na vida adulta.


Quando se sentia triste, deprimida e, principalmente, em luto, Wanda evitava lidar com seus sentimentos assistindo essas séries que lhe traziam conforto, por se passarem em realidades mais fáceis em que os maiores problemas eram um jantar atrapalhado com o chefe ou a preparação para um show de talentos: nada de ruim acontecia de verdade, afinal, o propósito desse tipo de série é arrancar risadas. Isso é muito bem resumido em uma conversa entre Wanda e Visão quando ele se junta a ela para assistir Malcolm in the Middle enquanto ela lida com a morte de Pietro:

Visão: É engraçado por causa do ferimento grave que o homem acabou de sofrer?

Wanda: Não, ele não está ferido de verdade...

Visão: Como você pode ter certeza?

Wanda: Não é esse tipo de série.

Visão: Wanda, eu não suponho saber o que você está sentindo... mas eu gostaria de saber. Se você quiser me contar, se isso trouxer algum conforto a você.

Wanda: O que o faz pensar que conversar sobre isso me traria conforto? [...] A única coisa que me traria conforto seria vê-lo de novo.


Wanda não consegue enfrentar seus sentimentos, conversar sobre eles: ela prefere reprimi-los para se isolar em um mundo de felicidade falsa. Ao invés de usar as séries para melhorar, ela se prende e se esconde nelas, utilizando-as somente como escapismo para fugir de sua realidade difícil até chegar em um ponto em que ela não aguenta mais. O que é algo bem relacionável; quantas vezes não fizemos isso?


A diferença sendo que Wanda tem poderes que a permitem manipular a realidade. Então, após mais uma perda, ela perde o controle de seus poderes e prende toda a cidade de Westview em um mundo de sitcoms, uma fantasia que ela torna real, e cria um Visão falso para substituir o falecido, se refugiando nessa realidade de mentira que é mais confortável do que a original.


Quando um ou outro evento estranho aparece e ameaça revelar a farsa, Wanda parece retomar a consciência por apenas alguns segundos para colocar tudo em ordem novamente. Não muito diferente de quando acordamos de um sonho bom e, antes de acordarmos totalmente, voltamos a dormir para continuarmos aquela história.

Até que uma quebra maior chega, e Wanda é obrigada a acordar de vez do sonho: Monica Rambeau. A agente da S.W.O.R.D. estava investigando o que havia acontecido à cidade de Westview quando foi sugada pela magia de Wanda e forçada a participar da fantasia, até que, talvez por um descuido de Wanda, ela recupera momentaneamente o controle e faz referência à morte de Pietro por Ultron. Wanda expulsa Monica da cidade, mas o estrago estava feito: parece que é a partir daí que ela está 100% consciente do que estava acontecendo.


Wanda passa mais alguns episódios tentando fingir que não está vendo, fugindo da realidade, mas os ataques de Hayward, as perguntas de Visão, o retorno de Monica e, principalmente, as ações de Agatha a fazem encarar os eventos. Agatha liberta alguns moradores do feitiço, e eles contam a Wanda que não apenas foram roubados de sua identidade original, como também estão sofrendo por terem os pesadelos dela e sentirem sua dor. Em desespero, Wanda começa a desfazer o feitiço, mas é interrompida ao ver que Visão e os filhos se desintegrarão. Após derrotar Agatha, Wanda leva a família para casa e se despede deles enquanto a ilusão é removida, libertando os moradores e deixando Wanda, novamente, sozinha.


Forçada a encarar sua dor – especialmente após a viagem por suas memórias promovida por Agatha –, Wanda tem finalmente a força para parar de fugir da realidade, e não hesita em desfazer o Hex e sacrificar sua família, voltando a sua triste vida, fugindo da ilusão e destruindo, de uma vez por todas, o escapismo em que estava presa desde que era criança.


Porém, não é apenas a fuga da realidade aquilo que Wanda negou no final de WandaVision. Afinal, ela não estava presa em uma ilusão qualquer, mas sim em uma específica, baseada em sua memória de diversas séries a que costumava assistir quando criança. E essas séries eram cheias de ilusões por si só.


Durante a série toda, vemos diversas referências irônicas a preconceitos e concepções errôneas presentes nessas séries, em especial o sexismo e o anti-comunismo muito presentes nos primeiros episódios. Diversos comentários irônicos refletem a realidade problemática apresentada nessas sitcoms, já que esse tipo de comportamento é trazido de maneira sarcástica por WandaVision, mas era normalizado nas séries que ela satiriza.

“Que tipo de dona de casa eu seria se não tivesse uma refeição gourmet para quatro pessoas prontinha em casa?”


Além disso, existe um aspecto bem específico das séries satirizadas que pode até passar despercebido: são todas americanas. WandaVision passeia pela história das sitcoms dos Estados Unidos, e isso pode parecer óbvio, é uma série americana, vai falar sobre séries americanas, não teria por que ser diferente, teria?


Mas tem algo que não é americano nessa série: a protagonista. Como já estabelecido, Wanda nasceu no país fictício Sokovia, que no universo Marvel fica no leste europeu, uma área particular quando falamos da relação com os Estados Unidos... Mesmo sendo sokoviana, Wanda cresceu com entretenimento americano. E sua família tinha o costume de assistir a essas séries para praticar o inglês, tanto que, durante suas sessões, eles se limitavam a falar inglês justamente para treinar o idioma.


Em um período pós Guerra Fria, Sokovia era um país falido com uma qualidade de vida péssima, e Wanda e sua família aprendiam inglês presumivelmente para fugirem dali, para terem melhores oportunidades... Afinal, Wanda associava sua vida perfeita à vida perfeita americana, que lhe era vendida através dessas séries de televisão produzidas a partir dos anos 50.


O “American Way of Life” (“estilo de vida americano”), modelo comportamental surgido após a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, resumidamente vendia a imagem dos Estados Unidos como esse país perfeito e utópico, onde a felicidade estava atrelada ao consumo. (O próprio Capitão América é um exemplo bem óbvio disso.) E qual era o principal meio de divulgação dessa ideologia? A televisão, que, através de séries e programas, normalizava um padrão de beleza e comportamento e vendia a felicidade desse estilo de vida.

Isso foi especialmente intenso no período da Guerra Fria, em que a propaganda era usada para exaltar a sociedade capitalista para fortalecer o combate à União Soviética e ao comunismo. Assim, séries de televisão vendiam os Estados Unidos como esse paraíso onde todos eram felizes e a sociedade era perfeita, atuando como meios de propaganda política forte. Espero não precisar dizer que não apenas esse estilo de vida propagava estereótipos datados como também escondia a realidade do país, com as camadas mais pobres continuando a sofrer como sempre, além do racismo e outros preconceitos sempre presentes e fortes.


Assim, Wanda e sua família, em um país do leste europeu e com uma péssima qualidade de vida, recebem essa propaganda americana e idealizam os Estados Unidos; em sua cabeça, o país é essa terra de oportunidades e felicidade. Isso não só esconde as verdadeiras condições dos EUA como sua atuação internacional: é irônico que Wanda e a família estejam internalizando esses ideais durante sua sessão de TV momentos antes de um míssil atingir sua casa e matar seus pais... um míssil americano.


Assim, a fantasia que Wanda cria é uma fantasia americana. A realidade criada por ela é a realidade do “American Way of Life”, que lhe foi vendida durante a vida toda. E, como foi apontado, nela existem o anti-comunismo, o sexismo e os padrões de vida vendidos como ideais, com Wanda como uma dona de casa enquanto Visão vai trabalhar em um escritório. Não é coincidência que, dentro do feitiço, ela perca o sotaque sokoviano com que costuma falar e soe como se houvesse nascido nos EUA, apenas para sair de Westview e voltar a falar normalmente, fato apontado diversas vezes na série.

A ilusão que Wanda precisa quebrar no episódio final não é simplesmente a do escapismo, mas a ilusão desse estilo de vida americano que nada mais é do que propaganda. É a toda essa fantasia que ela precisa dar adeus, à fantasia desse mundo americano ideal e à fantasia escapista que lhe impede de enfrentar a realidade e que apenas prolonga sua dor e adia seu tratamento.

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