Cruella e adaptações subversivas
- Marcelo Pedrozo
- 6 de ago. de 2021
- 11 min de leitura
Uma reflexão sobre a subversão feita por Cruella (2021) em relação à obra original, e por que ela não funciona tão bem quanto a de Maleficent (2014), por exemplo, devido às diferenças entre as duas histórias.

Lançado agora em 2021, Cruella é um filme interessante. Quando saíram as primeiras notícias e o trailer, a internet inteira ficou recheada de reclamações bem específicas: por que apresentar uma versão simpática de Cruella DeVil? Por que fazer um filme explicando de onde vem sua maldade? Por que nos fazer compreender seu lado? Cruella é uma vilã cuja principal motivação é assassinar 99 filhotes de cachorro para fazer um casaco. Ela é o símbolo máximo de crueldade animal. Por que fazê-la uma anti-heroína ou algo do tipo?
Quando essas reclamações saíram, eu achei todas elas extremamente bestas. Porque não era nada disso que o trailer e as notícias indicavam que o filme seria – nós não seríamos levados a entender o lado de Cruella, a torcer para ela, a perdoá-la. Apenas teríamos uma história divertida dela sendo a vilã que é, contando alguns detalhes de seu passado, sem justificar sua maldade.
E aí saiu o filme. E ele fez exatamente o contrário do que eu acabei de falar. Porque Cruella não é uma história que mostra a personagem principal sendo uma vilã divertida que vamos acompanhar, que mostra sua maldade em uma trama engraçada... Mas, apesar disso, ele também não é um convite para nos fazer simpatizar com uma assassina de cachorros. Porque agora, Cruella não é mais uma assassina de cachorros.

Muito pelo contrário, aliás.
E essa é uma decisão que me leva a várias perguntas. Cruella, no filme, não é uma vilã, e não se torna uma ao fim do filme, como seria esperado. Na verdade, esse longa apresenta uma nova Cruella, uma que nunca faria todas as crueldades a que estamos acostumados a associar a ela, ela inclusive chega a adotar vários cachorros durante a história!
O que é estranho. Já é algo que meio que tinha sido feito com Maleficent, em 2014, em que é contada uma versão alternativa de Sleeping Beauty em que Malévola enfeitiçou Aurora após ter sido metaforicamente abusada por seu pai, e se arrependeu de amaldiçoar a criança, criando um laço de família com ela e quebrando o feitiço ela mesma. A história inteira de Malévola foi subvertida para transformá-la em uma anti-heroína... e a mesma coisa foi feita com Cruella, para a minha surpresa.
Mas isso fazia sentido em Maleficent. Com Cruella, será que faz tanto sentido assim?
Porque Sleeping Beauty, como a maioria dos filmes da Disney antigos baseados em contos de fada, é uma história que praticamente implora para ser subvertida. O enredo é muito maniqueísta, ao apresentar os lados extremos do bem, representados por Aurora, Phillip e as fadas, e do mal, representado por Malévola, uma bruxa que literalmente faz seu propósito de vida ser colocar uma maldição em uma garota só porque os pais dela não a convidaram para seu batizado.

É uma trama simples, maniqueísta demais, e é totalmente compreensível que novas versões da história surjam com o passar do tempo, ainda mais na época em que estamos, em que tudo precisa ter uma história de origem, especialmente os vilões. Era só questão de tempo até termos acesso a uma Malévola menos representação-do-mal-puro e mais personagem-complexa. Até porque a própria motivação dela no filme original fazia pouco sentido.
Então, por mais que muita gente tenha torcido o nariz para Maleficent, é uma história que fez sentido em seu contexto ao subverter Sleeping Beauty, e apresentar uma versão do filme em que as coisas não são tão preto no branco, e dar um pouco de realismo (não sei bem se essa é a palavra certa) à história. Mostrar uma versão com menos maniqueísmo fantástico em que temos os grandes heróis puros e os grandes vilões corruptos que representam o mal encarnado.
Daí você pode estar pensando, por que eu disse que o mesmo não se aplica a Cruella? Afinal, a personagem é uma alegoria ao mal encarnado até maior do que Malévola, o que é bem perceptível em todas as comparações que o filme e o livro fazem entre ela e o literal diabo. Especialmente no livro, em que ela nunca sente frio, sempre fica perto da lareira, bota quarenta quilos de pimenta na comida. Mas no filme também, que prioriza vários elementos visuais parra associar Cruella ao diabo.
Então por que Sleeping Beauty faz sentido subverter, mas One Hundred and One Dalmatians não? Se é fácil de ver que a segunda é uma história tão maniqueísta ou até mais do que a primeira?
Não é difícil de ver a principal diferença entre os dois filmes: um é uma fantasia, passada em um reino medieval com fadas bondosas e bruxas malvadas, princesas enfeitiçadas e príncipes heróis; já o outro, é a história de uma mulher rica que quer fazer um casaco de pele com animais inocentes.

Sleeping Beauty é extremamente inverossímil (o que não é um defeito, não me entendam mal). Se fosse na vida real, os eventos do filme nunca aconteceriam da maneira como aconteceram na animação. Malévola nunca existiria na vida real do jeito em que ela é representada, especialmente com a motivação fraca que ela tem.
Mas e One Hundred and One Dalmatians? É uma história que, tirando os detalhes óbvios como os animais falantes, poderia muito bem acontecer no mundo real. Cruella é uma pessoa que poderia existir, e que existe no mundo real, muito diferente de Malévola.
É por isso que ela tem todas essas associações com o diabo, e por isso que ela é considerada a vilã mais cruel e assustadora de toda a Disney, porque ela é real. Personagens como Cruella e Frollo de The Hunchback of Notre Dame têm um peso a mais porque eles poderiam muito bem estar aqui ao nosso lado. E temos muitas Cruellas e Frollos no nosso mundo. Mas com certeza nenhuma Malévola.
Suas associações ao diabo são interessantes justamente porque não são muito óbvias. Colocar Malévola perto do demônio é fácil, ela é uma super bruxa vilã que quer enfeitiçar uma princesa do bem. Mas colocar Cruella é interessante porque ela representa o mal real, que existe no nosso mundo, e que é realmente o maior perigo que a gente tem, é esse o diabo das nossas vidas. As pessoas como Cruella.
Então por isso eu acho bizarro colocar Cruella como uma personagem boazinha, mas acho que faz sentido fazer isso com a Malévola. Essa onda de humanização dos vilões vem justamente para tornar as histórias mais realistas, mais verossímeis, para que não sejam tão maniqueístas como antes, porque não é assim que as coisas são no mundo real. E com Malévola, boa, faz sentido. Mas Cruella já é uma personagem realista. Então qual o ponto de humanizá-la, sendo que ela já era humana, mesmo que maniqueísta?
Isso parece até mostrar um certo desprezo a alguns dos temas da história original, que eram justamente sobre o diabo ser essa maldade humana, essa maldade real, mas daí vem Cruella e fala que “as pessoas precisam de um vilão para acreditar, então eu fico feliz de tomar esse papel”, palavras saídas da boca da própria personagem. Essa tentativa de subverter o que não precisava ser subvertido é estranha demais.
Essa frase existe em uma tentativa de deixar as coisas mais realistas, mostrando que as pessoas têm uma necessidade de criar um vilão para todas as histórias para deixá-las mais simples e maniqueístas, e portanto mais simples, porque é difícil lidar com a complexidade do nosso mundo. É daí que vem Malévola, e essa frase caberia no filme dela.

Mas em Cruella? Ninguém criou a Cruella por uma necessidade de ter um vilão para acreditar. Ela é uma pessoa que existe aos montes no nosso mundo, não uma personagem fantasiosa. E colocar essa frase no filme parece negar isso, parece ir contra o principal aspecto da personagem: nós nos assustamos com ela justamente porque ela é real. Cruella chega e diz que não, a gente criou ela na nossa cabeça, esse tipo de gente não existe, é só história pra criança. Mas... isso não é verdade.
Quem leu meu texto sobre adaptações pode estar se questionando por que eu estou tentando forçar Cruella a se adequar aos temas da história original, se naquele texto eu fiquei repetindo o tempo inteiro que são tramas diferentes e uma não tem obrigação de ser igual a outra e de seguir nada que a outra seguiu.
E bem, é verdade. E Cruella não tem obrigação nenhuma de seguir nada de One Hundred and One Dalmatians, até porque está tentando ser uma adaptação subversiva, que muda elementos do tema da original para falar algo oposto. Mas é simplesmente um tema que não faz sentido subverter nessa história. Ela tenta ser subversiva ao dizer que as coisas não são preto no branco, mas isso não cabe no diálogo que fazemos com o filme original, porque ele não falava bem sobre isso.
E como eu falei no outro texto, adaptações subversivas são muito bem vindas, a gente não precisa da mesma coisa o tempo inteiro, é bom que tenhamos novas histórias surgindo, que não se prendem ao que a original tinha colocado. Mas existe um limite, não? Porque se uma história começa a se afastar tanto da original que não tem mais nada a ver com ela... qual o ponto de se fazer uma adaptação?
Cruella é isso. Esse filme se afastou tanto da personagem original em sua tentativa de subverter as coisas que nem é mais uma adaptação. Se você desse outros nomes pros personagens e mudasse um ou outro elemento visual, ele funcionaria como um filme separado, que não tem nada a ver com a animação dos dálmatas, e que simplesmente conta uma história sobre essa estilista que se vinga da mulher que destruiu sua vida.
Porque Cruella é um bom filme. Eu gostei muito dessa história. Mas não é uma história que faz sentido contar com essa personagem. Ela se afasta tanto do que Cruella era, que nem subversiva chega a ser – ela é só uma outra história na qual enfiaram os personagens de One Hundred and One Dalmatians pra ter mais dinheiro na bilheteria. Porque obviamente, agora tudo tem spin-off, sequência, universo compartilhado, pra que as pessoas assistam as obras porque elas estão conectadas, e claro que Cruella não teria feito tanto sucesso assim se fosse um filme à parte. Mas seria um filme melhor, e seu tema teria causado menos estranhamento.
E vou dizer, não é raro que histórias se afastem tanto das originais que se tornem outra coisa completamente diferente, e era até melhor que fossem só essa coisa completamente diferente, sem a necessidade de inventar que é um spin-off ou um remake quando são duas obras que não têm nada a ver uma com a outra.

Once Upon a Time fez isso. Bastante. Sendo uma série que se baseia em subverter contos de fada, isso obviamente aconteceria. Algumas vezes, a subversão funcionou. Tivemos contos de fada que ainda eram os contos que conhecíamos, mas com uma reviravolta. Como Der Froschkönig oder der eiserne Heinrich (o conto do príncipe sapo), que foi adaptado no episódio Greenbacks, da ótima sétima temporada. Na trama do episódio, em vez de termos um príncipe que foi amaldiçoado a ser um sapo, tivemos um sapo que foi transformado em um príncipe. É uma subversão engraçada da história, que ainda mantém a magia do original, mas coloca uma reviravolta nela que inverte as coisas.
Mas tem outras vezes em que os contos acabam se afastando tanto, que nem são mais aquelas histórias, só têm uma ou outra semelhança pro espectador se interessar, mas são tramas originais. Tramas originais que são interessantes, mas que forçam uma conexão que não faz sentido. Aconteceu isso com a Malévola, que na série só quer recuperar a filha que a Branca de Neve roubou (sim, isso aconteceu!). A história dela não tem quase nenhuma relação com a da Bela Adormecida, podia ser qualquer outro personagem no lugar, mas botaram a Malévola porque sim.
Também aconteceu com a história de origem da Regina, uma das principais vilãs da série, que é a madrasta da Branca de Neve. No original, como todo mundo sabe, a rainha queria matar Branca por inveja, porque ela era mais bonita. Mas na série, Regina quer matar a princesa porque, quando criança, ela contou à mãe de Regina, Cora, que ela iria fugir com um homem comum para se livrar de um casamento arranjado. Assim, Cora mata o amor de Regina, que jura se vingar de Branca de Neve e passa a tentar matá-la.
Não existe nada na relação de Regina e Branca que se assemelhe à trama do conto de fadas original, ou do filme da Disney. O tema da história era beleza e inveja, mas aqui não tem nada a ver, é uma vingança porque Branca de Neve era uma criança fofoqueira.
Quero comparar essa hisória com a origem que a série de livros The Land of Stories dá para a rainha malvada. Nela, Evly teve seu amado aprisionado em um espelho mágico, e para não sofrer, seu coração foi transformado em pedra, tornando-a uma pessoa mais fria. Evly tenta a todo custo libertar o amado, mas ele vai perdendo a consciência aos poucos, até que um dia deixa de considerá-la a mais bela do reino, e passa a achar Branca de Neve mais linda. Assim, motivada pelo ciúme, Evly tenta matá-la.
The Land of Stories dá novos detalhes que mudam totalmente a história de Branca de Neve e da rainha malvada, tornando-a muito mais complexa do que o filme e o conto, que eram extremamente maniqueístas. Mas mesmo assim, ainda preserva os detalhes básicos que fazem com que ainda se trate de uma adaptação, mesmo que uma adaptação subversiva.

Já Once Upon a Time, assim como Cruella, se afastam tanto que criam personagens originais, que nada têm a ver com as personagens nas quais supostamente estavam se baseando. E podiam ter sido histórias originais excelentes, mas fingem que são uma adaptação para ter mais sucesso.
E já que estou falando de Once Upon a Time, quero mencionar a adaptação que a série faz da Cruella, que é excelente, por sinal. Na quarta temporada, somos introduzidos à personagem, mas não a vemos participando dos eventos do filme original – se aconteceram, não vimos. Mesmo assim, ela tem elementos que permitem com que ainda seja uma adaptação, mesmo levando a história para rumos completamente diferentes.
Uma máxima que Once Upon a Time sempre reforçou é que o mal não é de nascença, ele é criado. Por isso que todos os vilões têm uma história de origem triste. Mas Cruella não, ela é diferente. Aparecendo justamente em um arco que discutia os conceitos de heróis e vilões, Cruella é o contraponto necessário.
Somos apresentados à origem da personagem quando ela, ainda criança, é perseguida pelos dálmatas de sua mãe, e trancada por ela no sótão. A impressão é de que será outra origem triste. Mas anos depois, Cruella é libertada pelo Autor, Isaac, e conta a ele que sua mãe a trancou porque ela sabia a verdade: a mãe de Cruella matou todos os maridos que teve, e prendeu a filha para que ela não contasse a ninguém. Compadecido (e apaixonado), Isaac usa seus poderes como Autor para dar a Cruella o poder de controlar qualquer animal que quiser.
Cruella, então, vai à casa da mãe, onde descobrimos a verdade: não foi a mãe que matou os maridos, mas sim a Cruella criança. Desde pequena, ela sempre riu das pessoas que lutavam para não serem deixadas levar pelas trevas, e resolveu apenas mergulhar nelas e se divertir. Esse é o objetivo principal de Cruella: se divertir através da única coisa que a faz feliz... matar.
Ela controla os dálmatas da mãe para assassiná-la, e depois faz um casaco com eles. Quando descobre a verdade, Isaac encontra um jeito de pará-la: usa seus poderes de Autor para tirar de Cruella a capacidade de matar qualquer ser, roubando dela a única coisa que a fazia feliz.

Durante a série, Cruella tenta chantagear outros personagens para que matem Isaac por ela, para se vingar, mas nunca consegue. Ela acaba sendo morta por Emma, a protagonista, e a revemos no arco do Submundo, quando os protagonistas reencontram entes queridos e não tão queridos assim. No fim, Hades acaba deixando o Submundo com os heróis, e Cruella passa a dominar o lugar (bem sugestivo considerando todas as comparações com o diabo), impedindo que os residentes sigam em frente para um lugar melhor, para poder passar a eternidade torturando as pessoas. Ela é derrotada pelo Rei Arthur, que retoma o controle do Submundo.
Sim, Once Upon a Time é meio maluca às vezes.
De qualquer maneira, a Cruella da série ainda é uma adaptação boa da personagem, porque apesar de os acontecimentos serem bem diferentes, e das próprias motivações da personagem também o serem, sua característica básica que era ser o centro de toda maldade por ser simplesmente uma pessoa sem empatia ainda permanece.
Cruella se destaca entre os vilões da Disney porque ela só queria um casaco feito de cachorros, não dominar o mundo, e por isso ela é assustadora. Mesmo mudando boa parte de sua história, Once Upon a Time ainda mantém essa característica dela, o tema principal, e o usa para contar uma nova trama.
Mas obviamente, não precisava ser assim, tem várias maneiras de se adaptar Cruella DeVil. Mas não acho que uma delas seja completamente mudar a personagem, transformando-a em uma vítima, uma anti-heroína no máximo, distorcendo sua caracterização e sua história, tornando-a uma personagem completamente diferente que nada tem a ver com a original a não ser pelo nome (quer dizer, nem por isso)... e fingir que são a mesma pessoa mesmo não tendo nada a ver uma com a outra.
Cruella é um bom filme, sem dúvidas. Mas precisava ter parado de fingir que era uma adaptação de One Hundred and One Dalmatians.
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