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Níveis de maldade na ficção

  • Foto do escritor: Marcelo Pedrozo
    Marcelo Pedrozo
  • 3 de jun. de 2022
  • 11 min de leitura

Análise dos níveis de maldade a que um personagem pode chegar na ficção, utilizando Once Upon a Time (2011-2018) e outras obras, como o Marvel Cinematic Universe (2008-) e Encanto (2021), como ponto de partida.

Já falei sobre Once Upon a Time algumas vezes aqui, e em uma delas eu mencionei o quão caricatos os protagonistas haviam se tornado com o passar do tempo na série, por perdoarem seus antigos torturadores, ditadores, assassinos de seus entes queridos. Os vários vilões da série que ganharam redenções, entre eles os também protagonistas Regina, Rumplestiltskin, Hook e Zelena, foram perdoados pelos diversos assassinatos, genocídios, lavagens cerebrais, guerras, estupros que cometeram, e viraram heróis. E passaram a ser parte essencial da família das antigas vítimas de seus crimes.


Regina é de longe a personagem mais querida do público, e não era incomum ouvir discursos dos fãs exigindo que ela tivesse um final feliz, porque afinal, ela não merecia sofrer tanto como sofria. Mesmo ela tendo cometido literalmente todos os crimes que eu falei ali diversas vezes e não tendo pagado por praticamente nenhum deles.


E, apesar de tudo, a série trata isso com uma seriedade imensa que faz o público também levar essas redenções muito a sério. Compramos o fato, porque é o que a série nos vende, de que Regina e companhia se redimiram de verdade, estão lutando pelo lado do bem e merecem, sim, serem felizes, afinal, eles se arrependeram, o que mais era preciso fazer? Ninguém nem cogita colocá-los na cadeia pelos milhares de crimes que cometeram ou algo do tipo.


E quando algum deles passa algum arco sendo hostilizado por alguns personagens secundários, que afirmam que nunca poderão confiar neles por causa de seu passado, devemos ficar do lado desses ex-vilões – e realmente ficamos – e torcer para que eles provem aos rancorosos que merecem o amor deles, mesmo com tudo aquilo.

O final da série é literalmente a Regina sendo coroada a Rainha Boa, essencialmente a rainha de todo o universo, mesmo seu reinado anterior tendo incluído ela matando aleatoriamente vilarejos inteiros a torto e a direito, invadindo casamentos para assassinar o noivo na frente de todo mundo e amaldiçoando todos para que percam suas memórias e assumam identidades infelizes por trinta anos.


E isso é para ser uma coisa boa! E é! A gente compra isso tudo.


Até que não compra. Chega um momento em que você repara quão rapidamente as vilanias de Once Upon a Time são perdoadas, quão fácil é para que crimes que, sinceramente, nunca deveriam ser perdoados, sejam. E aí parte da série se quebra porque ela se sustenta nisso. Os ex-vilões são os personagens mais queridos e carismáticos da série, não só os protagonistas mas também secundários, como a Drizella, uma das personagens mais queridas da sétima temporada.


E isso funciona? Mesmo notando que esses crimes nunca deveriam ser perdoados na vida real, será que essa suspensão da descrença deve ser quebrada? Será que devemos apontar como um defeito de Once Upon a Time que Regina, Zelena, Rumple, Hook e tantos outros tenham sido perdoados? Ou será que tudo bem, porque afinal, é uma série fantástica?

A real é que, tirando esse aspecto, Once Upon a Time era uma série que tentava prezar pelo realismo. Claro, tínhamos magia, fadas, maldições, mas os personagens em geral agiam de maneira que fazia sentido... exceto nesses perdões. Até mesmo no episódio musical eles fizeram questão de explicar por que os personagens começaram a cantar do nada, para não quebrar a suspensão da descrença do público, mesmo sendo uma série baseada em filmes da Disney e portanto tendo a maior brecha de todas pra não ter que explicar nada.


Claro, com o passar do tempo, a série fica cada vez mais cartunesca, utilizando termos como “final feliz” e “história não contada” e outras expressões metalinguísticas com uma frequência cada vez maior. Então o perdão dos vilões não é mais tão estranho, já que a série toda tem um aspecto menos realista. Mas, muito antes disso, já na segunda temporada, Once Upon a Time tenta nos fazer ter pena de Regina quando os heróis – aqueles que ela deixou órfãos, abusou, amaldiçoou – não a convidam para jantar.


Então como é isso? A série quer que perdoemos seriamente essas figuras na vida real, é isso que ela tenta dizer? Ou ela usa esses exemplos exagerados para ensinar uma lição geral sobre perdão, mas que na prática não se aplicaria a assassinos, estupradores, ditadores como na série, mas sim a coisas mais banais? E portanto ela só dramatiza mais os crimes dos perdoados para contar uma história com conflitos maiores, mas que na verdade seria só uma metáfora?

Pode ser. Pelo menos eu gosto de pensar assim, porque do contrário eu acho que é sim um defeito enorme da série, porque é estranho ver tanto monstro sendo perdoado e olhar pra vida real, pro tipo de pessoa – ditadores, estupradores, genocidas – que na série é perdoada e vira da família, e associar um ao outro.


Mas algo é interessante de se apontar: existia uma época em que Regina não era essa favorita toda do público. E a diferença entre essa época e o tempo em que ela se tornou amada é interessante de se analisar.


Na primeira temporada, como eu já escrevi aqui, os conflitos eram divididos entre enredos sérios e realistas no presente e flashbacks fantásticos e épicos da Floresta Encantada. Assim, em um único episódio assistíamos a uma investigação da corrupção de uma prefeita e à entrada de um Gênio da Lâmpada na corte do rei do Mundo dos Contos de Fada. Com o passar do tempo, ambas as tramas passaram a ser fantásticas, com magias e feitiços, só mudando o cenário mesmo. Mas, na primeira temporada, Regina era odiada.


E isso porque, naquela época, a vilania de Regina era real.

Na primeira temporada, os enredos do presente nos mostravam uma prefeita corrupta, uma mãe ruim, uma megera que armava para o relacionamento alheio não funcionar, uma assassina que mata seu ex-amante e arma para assassinar outra pessoa e botar a culpa em um desafeto. Crimes horríveis, claro, mas que podemos associar com a vida real, até porque aconteceram em um cenário realista, afinal, era uma época em que parte da trama da série se passava em um mundo sem magia. Então era fácil associar as maldades de Regina a maldades que vemos na vida real, e odiá-la.


Mesmo nos flashbacks, a vilania de Regina é quase contida. Ela mata apenas aqueles que precisa para seguir seu objetivo de se vingar de Branca de Neve, e aqueles que a desafiam diretamente. São assassinatos que têm peso para nós, já que muitas das vítimas são personagens de que gostamos, mas também porque cada assassinato mostra mais sua crueldade. Cada maldade importa.


E isso muda na segunda temporada. Não só porque Regina começa um arco de redenção (até porque, mesmo com ele, ela ainda assim chega a fazer muita vilania mesmo no presente, sendo cúmplice de um assassinato e tentando cometer outros, chegando até a tentar cometer genocídio). Mas agora, algo está diferente. Essa magia trazida para a trama principal, os feitiços e maldições que agora tomaram a série inteira e expulsaram o realismo, tudo isso faz com que os crimes de Regina tenham perdido o peso, porque agora eles são exagerados. São fantasiosos.


Mesmo nos flashbacks passamos a ter uma Rainha Má muito pior e menos realista do que antes. É a partir da segunda temporada que vemos Regina ordenar que seus soldados matem vilarejos inteiros, é a partir daí que vemos ela cometendo assassinatos de graça, matando seus próprios soldados por diversão, simplesmente matando quem dê na telha. (Tanto que um de seus gestos em sua canção no episódio musical é justamente o do feitiço que ela usa para quebrar o pescoço de quem quiser: enquanto dança, ela gratuitamente mata dois soldados sem razão nenhuma.)

Então, a vilania de Regina fica tão exagerada, chega a um ponto tão alto, com ela cometendo tantos crimes hediondos todo episódio sem muita razão para que os cometa, que cada crime perde o valor. Se antes nos importávamos com cada vez que ela matava alguém, se cada assassinato ou cada armação nos chocava, agora já virou rotina, porque já vimos que ela fazia isso todo dia. E isso faz com que fique mais fácil de perdoá-la, porque já paramos de associá-la a uma figura real. A vilania de Regina é tão fantasiada que não nos importamos mais com ela, e é por isso que ela consegue se redimir, porque já não sentimos mais seus crimes como antes.


No segundo episódio da série, Regina arma para que seu filho adotivo, Henry, que também é filho biológico da protagonista Emma, ouça a mãe biológica confessando que acredita que a insistência dele em acreditar em contos de fada é loucura, em uma tentativa de separar os dois. É um momento cruel, com Regina usando o filho para atingir a rival e fazer com que ela saia de seu caminho. Mas assim, não é uma maldade maior do que o genocídio que ela planeja na temporada seguinte contra a cidade toda. Só que é uma maldade que podemos trazer à realidade, é uma maldade que sentimos no coração. Mas quando ela quer matar toda uma população com um feitiço, já chegou num nível tão alto que não nos atinge mais.


Então, o crescimento do nível de maldades de Regina é, ironicamente, o que nos faz comprar sua redenção, porque é o que faz com que paremos de nos importar com seus crimes.


Além disso, a partir da terceira temporada temos uma Regina heroica no presente, que genuinamente tenta fazer a coisa certa, e que contrasta com a Regina vilã ditadora genocida dos flashbacks. E esse contraste faz com que distanciemos as duas, e não atribuamos a Regina os crimes da Rainha Má. Essa separação mental fica tão grande que, na quinta temporada, Regina se divide em duas e elas literalmente se tornam personagens diferentes.

É por isso que, quando Regina reclama que acha que nunca vai ganhar a confiança dos secundários – aqueles mesmos que já lutaram uma guerra contra ela por sua tirania e seus assassinatos, e que passaram trinta anos sofrendo lavagem cerebral dela –, nós queremos genuinamente que ela ganhe o amor deles, que ela prove seu valor, e até ficamos com raiva desse pessoal que ainda não a perdoou, já que, se não sentimos mais o peso de seus crimes, não achamos que eles devam sentir também.


E a própria série trata esses crimes exagerados com um peso ínfimo que chega a ser ridículo. Na segunda temporada, havíamos tido um flashback em que os heróis discutiam, após vencerem a guerra contra Regina, o que deveriam fazer com ela (já que não podem mantê-la presa porque, com seus poderes, ela poderia escapar a qualquer momento). Branca de Neve convence a todos a não executá-la, e consegue de Rumplestiltskin um feitiço que impedirá Regina de machucá-la ou ao príncipe enquanto continuarem na Floresta Encantada. (E é por isso que ela decide lançar a maldição que os leva para o mundo real, pois lá ela poderá machucá-los.) Mas conhecendo Regina, Branca lhe promete que, se ela machucar algum de seus súditos para atingi-la, ela irá sim matá-la.


Daí corta para, na sexta temporada, um flashback seguindo esse em que Branca e David chegam a um vilarejo destruído por Regina, com todos os seus habitantes assassinados. Em vez de seguir sua promessa e matar a ex-rainha, Branca simplesmente fala que agir contra ela não os faria melhores do que ela (mesmo Regina cometendo genocídio a torto e a direito!) e completa: “A melhor maneira de termos nossa vingança é mostrar à rainha que, não importa o que ela faça, sempre podemos encontrar a felicidade”. Fácil pra você falar, Branca, do seu castelo confortável protegida por magia, mas considerando que você é a nova rainha era de se esperar que você se importasse um pouco com seus súditos, né, mas tudo bem.

Do primeiro genocídio causado pela favorita do público a gente nunca esquece.


Isso porque a série em si não se importa mais com esses genocídios, então os personagens também não, então a gente também não. E nem pensamos nesse novo genocídio como um novo crime para se botar na lista de Regina, pois já passou, estamos acostumados, ela mudou, tá tudo certo, ninguém liga.


Mesmo quando descobrimos que, no passado, Hook havia matado, sem saber, o pai de David, avô de sua namorada Emma, isso não importa pra ninguém, todos continuam apoiando o casamento deles, até o próprio David, e Emma fica mais brava por ele ter escondido essa informação do que por ele ter matado seu avô. Esses crimes são tão hediondos que é até ridículo, e por isso ninguém liga mais, todo mundo pode ser perdoado.


E isso é porque quanto mais realista uma maldade é, mais fácil é nós a odiarmos. Quando Julian faz bullying com Auggie em Wonder (Extraordinário), nós o odiamos, mesmo que ele seja uma criança, ao mesmo tempo que adoramos o Darth Vader mesmo com tudo de pior que ele fez. Porque a vilania do Darth Vader é de mentira, mas a do Julian parece real para nós. Nos ofende pessoalmente.

Isso explica também uma discussão interessante (e quando eu digo interessante, quero dizer um monte de gente chata na internet sem ter o que fazer brigando por coisa inútil) dos fãs da Marvel. Muitos se irritam com o fato de a Wanda permanecer uma personagem querida mesmo depois de escravizar uma cidade inteira, enquanto um personagem como John Walker, que fez coisas teoricamente menos piores, foi odiado.


E isso é simplesmente porque, na vida real, ninguém tem que lidar com uma Wanda. Ninguém tem que lidar com alguém que tem os poderes dela e que prende uma cidade inteira vivendo sua fantasia de sitcom por causa do luto. São ações horríveis, mas fantasiosas. Mas nós temos que lidar com vários John Walkers. Vivemos em um mundo onde o imperialismo dos Estados Unidos é bem presente, onde violência policial é um grande problema, e onde pessoas como ele causam um grande estrago.

É também por isso que muita gente não aceitou que a Abuela Alma de Encanto tenha sido perdoada pela família no final do filme, porque o trauma familiar que ela causou nos filhos e netos é algo que muita gente também sofre de seus parentes na vida real; muitos têm problemas com suas próprias Abuelas Almas, que fazem esse tipo de abuso psicológico, e não gostam de ver alguém como ela ser perdoada.

Em resumo, não há problema nenhum em gostar de vilões. Em gostar de gente que só faz coisa ruim. Como a Wanda, por exemplo, em que várias pessoas se irritaram com alguns fãs dela que estavam torcendo pra ela matar todo mundo mesmo em Doctor Strange in the Multiverse of Madness. Mas não há problema nenhum nisso, porque... a Wanda não é real. Ela é uma personagem de uma história, ela não vai matar ninguém de verdade. Então tudo certo gostar dela. Até porque quanto mais complexo um personagem é, quanto mais defeitos, mais interessante ele é, na maioria das vezes, e a Wanda era uma personagem bastante complexa justamente pelos defeitos (isso é, antes de estragarem ela nesse filme).


Mas alguns vilões, ou não necessariamente vilões, estão ali para representar um tipo de pessoa que a gente vê na vida real. E que talvez não causem um estrago tão grande quanto a Wanda em seu genocídio multiversal, mas é um tipo de pessoa que, ao contrário da Wanda, existe e faz um dano real. As Abuelas Almas, os John Walkers, os Julians, ou personagens negacionistas, racistas, homofóbicos, entre outros, estão ali justamente para nos lembrarem desse tipo de pessoa na vida real, e é por isso que os odiamos. Nós somos levados a odiá-los enquanto amamos outros tipos de vilões cuja maldade é fantasiosa, porque aquele tipo de vilão existe de verdade. E cada maldade deles nos afeta, assim como as maldades da Regina na primeira temporada, porque conhecemos bem aquilo. São maldades teoricamente contidas, mas reais.

Não tem problema gostar de vilão. Mas não é hipocrisia gostar da Wanda e não do John Walker, porque as vilanias deles são construídas exatamente para simpatizarmos com ela e não com ele, mesmo que ela tenha feito coisa pior. E tudo bem. Porque nenhum dos dois existe de verdade, então estamos livres para acharmos o que quisermos. Perdoar um genocida da ficção é de boa, o que não é de boa é perdoar um genocida da realidade que faz um estrago real e que machuca pessoas de verdade.

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