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Por mais histórias de cotidiano em mundos de fantasia

  • Foto do escritor: Marcelo Pedrozo
    Marcelo Pedrozo
  • 22 de out. de 2021
  • 9 min de leitura

Uma defesa de um tipo pouco comum de histórias: as que exploram o cotidiano dos personagens, mas em universos em fantasia; usando como ponto de partida a segunda trilogia da série Miss Peregrine's Home for Peculiar Children (2011-2021).

Eu já falei nesse texto aqui sobre um dos motivos de eu ter desanimado com a segunda trilogia da série Miss Peregrine’s Home for Peculiar Children. Essa nova saga estava trazendo uma abordagem interessante sobre o mundo peculiar nos Estados Unidos, expandindo o universo apresentado nos primeiros três livros, que focavam nos peculiares europeus.


Mas aí, no segundo livro dessa trilogia nova, The Conference of the Birds, tudo aquilo que tinha sido trazido de novo foi completamente abandonado, e a história passou a depender dos elementos dos primeiros livros, que supostamente tinham sido resolvidos já. Mas não, os vilões novos não são mais uma ameaça! Os vilões antigos voltaram! As mesmas ameaças! O mesmo tudo. Ainda não li o último livro, e espero que ele traga de volta os elementos novos, mas não tenho muita certeza.


Mas essa não foi a primeira vez que eu fiquei decepcionado com a segunda trilogia por mudar de rumo inesperadamente e abandonar todas as histórias legais que ela estava preparando. Foi a segunda.


Porque lendo o primeiro livro, A Map of Days, as primeiras cem páginas, mais ou menos, parecem estabelecer que o livro, e a trilogia em geral, seriam um tipo de história bem específico, mas não muito comum. Mas aí, depois da página 100, vem a descoberta de um segredo do passado e começa o novo enredo do livro. Que acaba sendo trocado por outro, mais uma vez, em The Conference of the Birds.


Mas esse enredo que durou cem páginas, e que eu estava muito ansioso para ler, era o seguinte: a vida cotidiana dos peculiares no mundo moderno.


Um pouco de contexto da história: as crianças peculiares viviam em uma fenda temporal parada nos anos 40, com o mesmo dia se repetindo sempre, então eles não envelheceram por muitos anos e tinham sempre a mesma rotina, e claro, tinham hábitos da época em que estavam. Mas aí, no final da primeira trilogia, eles conseguem sair das fendas temporais sem riscos e decidem passar um tempo com o protagonista Jacob, no presente.

E o quarto livro começa assim. Os peculiares acabaram de chegar à casa de Jacob, e ele precisa lidar com o fato de que seus amigos não sabem muito bem se portar no século XXI. Assim, a tutora deles, a Srta Peregrine, pede que Jacob dê aos peculiares “aulas de normalidade”, para que ele os ensine a se passarem por normais e não atraiam a atenção de ninguém.


Ao mesmo tempo, Jacob tem que lidar com os pais, que rejeitam a peculiaridade do filho; o pai de Jacob inclusive diz que prefere ter a memória apagada a conviver nesse mundo, o que é um momento bem forte para o protagonista e eu gosto bastante de todo esse conflito.


Então, as primeiras cem páginas são basicamente isso: vemos a noite em que os peculiares chegaram, com eles contando o que vem acontecendo no mundo peculiar desde que Jacob foi embora e a Srta Peregrine pedindo que ele dê as aulas de normalidade; no dia seguinte, todos vão à praia de manhã e há uma sequência bem interessante da interação entre os personagens, especialmente entre Jacob e a namorada Emma; daí os pais de Jacob acordam e rejeitam o filho, tendo a memória apagada e sendo enviados pra uma viagem longa para não atrapalhar a estada dos peculiares; e Jacob sai com os amigos para o shopping para comprar roupas novas para eles.


Mas aí eles param na casa do avô de Jacob, que era peculiar também, encontram um bunker secreto dele, descobrem que ele costumava sair em missões secretas para proteger crianças peculiares, e Jacob decide procurar um dos amigos do avô e receber uma missão também. Porque senão ele vai ficar preso no Recanto do Demônio – o lugar onde os peculiares estão morando – dando discursos motivacionais nos intervalos das aulas de normalidade. E ele e alguns peculiares partem em uma missão que me fez xingar a irresponsabilidade deles o tempo todo. Mas a história acaba sendo legal.


De qualquer maneira, tudo o que as primeiras páginas pareciam preparar é completamente abandonado após a descoberta do bunker do avô de Jacob: as aulas de normalidade são esquecidas, os peculiares não vão mais tirar as férias deles no século XXI, os pais de Jacob mal são mencionados...

Ah, e tem a escola também. Porque a primeira trilogia se passa durante as férias de verão de Jacob, e quando a segunda começa, as férias estão acabando. Tem uma cena no começo do livro em que os peculiares pedem pizza, e quem vai entregar é um colega de escola de Jacob. Ele então tenta esconder os amigos, e o entregador lembra a Jacob que as aulas recomeçam em uma semana. E ele fica surpreso, porque com tudo o que aconteceu, nem tinha se lembrado mais disso.


E bem... ele não lembra mais mesmo. Porque o fim das férias não é mencionado no resto do livro, e nem no segundo livro também. E não sei se vai ser no terceiro.


A verdade é que, durante as primeiras cem páginas, eu estava muito animado para ler uma história que focasse simplesmente nos peculiares tendo que se adaptar ao mundo do século XXI. Queria ver as aulas de normalidade, queria ver as dificuldades que eles teriam, as gafes que cometeriam, queria ver Jacob na escola tentando esconder os amigos, queria ver o namoro de Jacob e Emma (que parecia que ia levar a um enredo interessante pela conversa dos dois na sequência da praia)... Sem contar que seria engraçado ver os protagonistas estudando junto com Jacob e contrastando com o mundo real, sei lá.


Mas não foi essa a história que se seguiu – tudo o que parecia estar sendo preparado no começo foi esquecido para favorecer a história do passado do avô de Jacob e da missão que ele queria ter, etc e tal. E eu vou dizer que isso me decepcionou bastante. Porque seria um tipo de história que a gente não vê muito por aí, mas que seria muito interessante, uma história do cotidiano em um mundo de fantasia.


Que é algo que não aparece todo dia. Se é cotidiano, é uma história que vai se passar no mundo real, com as regras do mundo real e nada de sobrenatural acontecendo. E se é fantasia, vai ser uma história de aventura, de mistério, de ação, em que os protagonistas vão enfrentar monstros e impedir a destruição do mundo e tal.


E eu gosto muito das duas coisas. Cotidiano e fantasia. Adoro ler sobre o dia a dia chato de uma pessoa comum, e me identificar com aquele protagonista, com os problemas que ele vive. E adoro ler também sobre uma aventura épica, com magia, com protagonistas com poderes extraordinários e que passam por desafios bizarros.

Então, seria muito interessante ver, em uma mesma obra, em um mesmo livro, um enredo que juntasse o cotidiano e a fantasia, e por cem páginas, eu achei que esse era o rumo que Peculiar Children tomaria. Porque parecia perfeito: o grande vilão tinha sido derrotado, mas ainda havia muitos problemas pessoais dos personagens a serem resolvidos, e a ideia de colocar esse pessoal do anos 40 com poderes na sociedade atual tinha muito potencial para ser explorado. Dava para ter todo o tipo de situação interessante.


Mas a história seguiu por um outro caminho. E foi um caminho bom – até ele também ter sido abandonado em favor de um terceiro caminho, que aí eu não gostei muito não –, mas é triste que o primeiro caminho não foi pra frente, porque, de verdade, teria um potencial interessante de fazer algo que não é feito todo dia.


Toda história de fantasia que a gente tem, obrigatoriamente, tem um grande vilão, uma ameaça para enfrentar, um esquema maléfico que os heróis precisam derrotar. Mas e se pegássemos esse universo e fizéssemos uma história sobre o dia a dia daquele pessoal, sobre o que eles fazem quando não estão enfrentando vilões? Porque eles têm uma vida além disso, não têm?


Muita gente acha histórias de cotidiano chatas, e prefere enredos com elementos fantásticos justamente para sair da mesmice, para mergulhar em um outro mundo e esquecer da própria vida por alguns momentos. Mas uma história de cotidiano em um mundo de fantasia poderia resolver esse problema: é mágico o suficiente para dar aquele escapismo, mas é pé no chão o suficiente para permitir a identificação das pessoas. É o melhor dos dois mundos!


E eu com certeza não sou o único que está à procura desse tipo de história. Afinal, boa parte do apelo de Harry Potter não é exatamente essa? A maior parte dos livros se passa em Hogwarts, com os personagens tendo que se preocupar com os deveres de casa, com os campeonatos do esporte, com as provas para as quais têm que estudar... Uma boa parte de toda a história se passa durante as aulas mesmo. Eu sei que o meu capítulo favorito sempre foi aquele em que os personagens têm que fazer as provas dos NOMs no quinto livro.

Os primeiros seis livros – porque no último eles abandonam a escola – se constituem quase inteiramente dos problemas cotidianos dos personagens, o que promove uma identificação muito grande. Eles também têm prova, dever de casa, professor chato, campeonatos... mas tudo isso é mágico, eles aprendem sobre feitiços e poções, o jogo é com vassouras voadoras, então fica interessante para a gente, dá aquele toque fantástico ao mesmo tempo em que nos identificamos com os personagens. É parecido o suficiente e diferente o suficiente.


Óbvio que Harry Potter tem a ameaça do Voldemort e tudo o mais, então está longe de ser puramente uma história de cotidiano num mundo de fantasia. Mas boa parte da série é sim em momentos do dia a dia dos personagens, e eu acho que é por isso que ela acabou tendo tanto sucesso.


Mas não só com Harry Potter dá para ver o apelo desse tipo de história. Vamos falar da Marvel – qual é o super-herói mais popular da editora? O Homem-Aranha, que é justamente o super-herói mais conhecido em sua versão adolescente ou jovem adulto, que precisa equilibrar sua vida como Peter Parker e como Homem-Aranha. Ele tem que cuidar dos relacionamentos com namoradas, das provas, dos estudos, dos amigos, ao mesmo tempo em que protege a cidade em sua identidade secreta.


Os vários filmes que adaptam o personagem dão um destaque especial a esse elemento, os da trilogia do Sam Raimi especialmente, em que ele tem que cuidar do relacionamento com a Mary Jane, com o Harry, além de precisar deixar os professores orgulhosos, ao mesmo tempo em que derrota os vilões. E é esse o verdadeiro conflito que deixa a gente em dúvida, porque os vilões todo mundo sabe que vão ser derrotados, o que está em risco mesmo é a vida pessoal do Peter. Então vamos assistir a como ele se vira com essa situação, se escolhe dar prioridade para qual identidade e quais são as consequências dessa escolha. Se parece que eu estou narrando o enredo de Spider-Man 2, considerado o melhor filme do Homem-Aranha, é porque eu estou mesmo, nesse filme a vida pessoal dele estava desmoronando e por isso ele desiste de ser super-herói, mas aí a cidade fica desprotegida, e ele tem que equilibrar isso. Não é por isso que todo mundo gosta tanto desse filme?

Eu sei que um dos filmes do MCU que eu mais gosto é justamente Spider-Man: Homecoming, que é um dos mais diferentes na questão de tom, por ser uma história de super-herói ao mesmo tempo em que é um drama adolescente. Ele equilibra bem as relações sociais do Peter – e nisso, atualiza os personagens e as dinâmicas para o século XXI, assunto sobre o qual eu ainda vou escrever aqui – com a vida de super-herói, e mesmo o vilão que ele precisa enfrentar não é alguém que vai destruir o mundo, e sim só alguém que está vendendo armas para criminosos. É o filme mais pé no chão do MCU, e que bom, quero mais!


A razão que sempre é dada para a popularidade do personagem é justamente o quão fácil é se identificar com ele. Os problemas que ele enfrenta são problemas que todo mundo também enfrenta, na família, amigos, amor, trabalho, dinheiro, ele é uma pessoa comum que por acaso é um super-herói também – e isso só faz complicar sua vida pessoal.


Uma das maiores críticas à franquia The Amazing Spider-Man foi ter tirado da história a capacidade de identificação, ao fazer o Peter ser a única pessoa possível para ser o Homem-Aranha, graças a questões genéticas do pai dele e tal, essencialmente tornando a história uma de destino, comum às histórias de fantasias clássicas, ele estava desde sempre destinado a ser o Homem-Aranha e tal... mas essa não é uma história fantástica normal, ela tem esse aspecto do cotidiano, que é fundamental para que ela funcione, e esses dois filmes meio que tiraram isso.


Então não é algo que só eu acho, com certeza, e a popularidade de Harry Potter e do Homem-Aranha prova isso. E eu acho que a segunda trilogia de Peculiar Children poderia ter pegado inspiração nessas obras, e seguido o caminho que tinha preparado nas primeiras cem páginas. Óbvio que ainda ia ter vilão, ainda ia ter aventura, porque com certeza não ia ser só cotidiano, nem eu estava esperando isso... mas podia pelo menos ser que nem essas duas outras histórias, em que o vilão é extremamente secundário ao enredo, e o que importa mesmo são as relações sociais e o dia a dia dos protagonistas.


Porque todo mundo sabe que o mundo vai ser salvo no final. Isso não desperta a tensão no espectador. O que desperta é saber se os personagens vão conseguir sucesso na vida pessoal, vão conseguir aquele trabalho que tanto desejam, vão ficar com a pessoa que querem, vão ter o perdão da família. E esse tipo de coisa nos atrai tanto porque podemos nos identificar com esses personagens, ao mesmo tempo em que admiramos esse mundo fantástico em que eles vivem.


Por mais histórias de cotidiano em mundos de fantasia, por favor!

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