Loki: uma defesa do filler
- Marcelo Pedrozo
- 27 de ago. de 2021
- 10 min de leitura
Uma defesa do que é considerado "filler" em obras de ficção, utilizando a série Loki (2021) e as outras séries da Marvel Studios no Disney+ como ponto de partida.

De todas as três séries da Marvel em live-action lançadas até agora no Disney+ (eu digo em live-action porque What If...? estreou agora), de longe a que teve a melhor recepção foi Loki. Digo, eu acho que WandaVision chegou perto, mas daí chegou o episódio final e muita gente passou a odiar a série inteira por causa dele. (E o episódio nem foi tudo isso que falam não.) Mas Loki chegou em outro nível de recepção – desde o começo, desde o primeiro episódio, a série foi apontada como a “melhor série da Marvel até então”, com o melhor roteiro, a melhor direção, a melhor trilha sonora. Absolutamente tudo foi extremamente amado pelos fãs.
Nem WandaVision pode competir aqui porque, nos primeiros episódios, ainda tinha muita gente chata reclamando da sitcom e que a história não avançava (ponto que eu devo retomar mais pra frente no texto, inclusive). Mas com Loki, a admiração foi imediata, e parecia unânime, todo mundo tinha se apaixonado pela história de Loki e Mobius e Sylvie.
Eu vou confessar que o primeiro episódio não me empolgou muito não. Não sei se eu esperava alguma coisa mais diferente, considerando que os trailers estavam cheios de cenas em lugares malucos e desconexos e eu estava curioso pra saber mais, e o episódio acabou sendo só na TVA mesmo... Além de 70% do episódio já ter sido mostrado nos trailers, então não teve muita coisa nova, e eu me senti revendo as cenas em vez de assistindo pela primeira vez.
Mas tá, isso não importa. Eu continuei acompanhando a série, não muito empolgado – pelo menos não tanto quanto estava com WandaVision ou até com The Falcon and the Winter Soldier –, mas ainda gostando, ainda querendo saber como a história ia se desenvolver. Daí, chegou o terceiro episódio, Lamentis, que mostrou Loki e Sylvie presos em um apocalipse e desesperados para conseguir a energia para recarregar o TemPad e escapar dali antes que a lua em que estavam fosse destruída. Durante o episódio, vemos os dois se conectando, e formando uma relação interessante, compartilhando seus passados, falando de seus planos, filosofando sobre o que faz um Loki um Loki.
E esse foi de longe o episódio da série que eu mais gostei. Porque acho que foi a primeira vez, exceto pela cena no primeiro episódio em que o Loki está fazendo uma maratona do MCU, em que de verdade eu me conectei com os personagens, assim como acontece com Loki e Sylvie na história. Toda a sequência do trem é ótima, deu mais profundidade aos dois personagens, e eu pude olhar para eles com outros olhos, mais interessado em saber como se desenrolaria sua história.

Mas aí eu chego na internet depois de ter visto e percebo que... esse foi o episódio que o pessoal menos gostou. Muita gente xingando, dizendo que tinha sido o pior episódio até então, que foi muito ruim, que os outros foram infinitamente superiores, e apontando um defeito bem específico: que ele tinha sido um filler.
Em inglês, “filler” significa, literalmente, “preenchimento”. Na ficção, é um termo que foi usado inicialmente para definir episódios de anime que precisavam ser criados para que a série não alcançasse o mangá na qual era baseada; para isso então, criavam-se esses episódios “fillers”, em que nada de importante acontecia, só para ganhar tempo até que houvesse material suficiente para continuar adaptando a história principal.
Esse termo então foi ganhando um significado maior, não necessariamente se referindo apenas a episódios criados para que o anime não alcance o mangá, mas a qualquer episódio de série que não avance a história principal, que seja desnecessário, que esteja ali só para encher linguiça, que não seja importante.
E para muitas pessoas, Lamentis, o terceiro episódio da primeira temporada de Loki, foi exatamente isso: um filler. E faz sentido, porque a história principal meio que realmente dá uma pausa aqui. Loki e Sylvie estão presos em uma lua aleatória, em outro tempo, longe da TVA (que mal aparece no episódio), e passam a meia hora inteira tentando escapar dali, para poderem retomar seus planos. Teoricamente, a única revelação importante é que Sylvie conta a Loki que os funcionários da TVA são variantes, assim como os dois. De resto, o episódio é quase uma história paralela, não importante à trama principal da temporada.
E meio que isso é verdade mesmo. Todo o enredo da fuga de Lamentis-1 não é exatamente importante para a temporada, focada na TVA e nos Guardiões do Tempo. Mas nesse episódio temos algo muito importante, que é Loki e Sylvie se conectando. O amor dos dois é crucial para o enredo da temporada, extremamente importante mesmo, e é nesse episódio que os dois – que se conheceram nos minutos finais do capítulo anterior – puderam criar esse laço. Senão, quando vemos Loki extremamente apaixonado por Sylvie no episódio seguinte, não teria muito sentido.

Então, é mesmo um filler? O enredo em si pode não ter avançado muito... mas o trabalho de personagem de Loki e Sylvie, a criação da relação dos dois, é importantíssimo para o desenvolvimento da temporada. Então faz sentido chamar de filler?
Muitos diriam que sim, porque afinal, a criação do elo entre eles poderia ter sido feita em meio a outro enredo, em meio à história da TVA avançando, com outras revelações, outros personagens sendo mostrados. Tá, poderia ter sido mesmo. Mas não foi. E daí?
Toda boa história precisa ter tanto um enredo bom quanto um bom desenvolvimento de personagens. E até o momento, Loki praticamente só tinha feito o primeiro, na minha opinião. Foi apenas com a pausa na jornada, com os protagonistas presos em Lamentis-1, que a série foi capaz de parar e dar um pouco de atenção aos personagens. Nos três episódios seguintes, há uma melhor distribuição do enredo e personagens, mas até então, Lamentis tinha sido a primeira vez em que eu senti aqueles personagens de verdade, fora a cena do Loki assistindo o que sua vida poderia ter sido no primeiro capítulo.
Mas tá, isso não importa muito, afinal, opinião é opinião, ninguém tem a obrigação de gostar do episódio ou de deixar de achar que ele poderia ter desenvolvido os personagens de maneira mais integrada ao enredo. Mas ao mesmo tempo, eu acho meio bizarro chamar ele de filler, considerando a importância do amor de Loki por Sylvie e da revelação de que os funcionários da TVA são variantes. Não é como se absolutamente nada tivesse acontecido.
E também não é como se, mesmo se nada de importante tivesse acontecido mesmo, isso por si só ditasse que o episódio foi ruim. A gente tem uma concepção meio errada de que ser filler é necessariamente uma coisa ruim, mas... é mesmo?

Pra isso vou voltar ao começo do texto em que eu falei sobre as três séries no geral (WandaVision, The Falcon and the Winter Soldier e Loki). Como eu disse, a recepção inicial a WandaVision foi mista, porque os primeiros episódios, que se dedicavam inteiramente à paródia das sitcoms, “não avançavam a história, era meia hora inteira só de sitcom”. E ninguém obviamente tem a obrigação de gostar de um episódio de sitcom (eu adorei, saudades inclusive), mas também acho bizarro que tenham chamado de filler sendo que a proposta inicial da série era justamente... a sitcom. WandaVision foi vendida desde o começo como essa paródia de sitcom, que exploraria o luto da Wanda e tudo mais, mas que faria isso através da homenagem a essas séries de comédia, e foi isso que ela fez. Então é mesmo um filler se é exatamente a proposta da série?
Mas mesmo com um pessoal reclamando das sitcoms, WandaVision teve realmente uma boa recepção durante a série. Foram oito semanas cheias de amor pela história que estava sendo contada, cheias de teorias para entender o que estava acontecendo em Westview... até que chegou o último episódio e, entre outros problemas, ele não tornou algumas teorias reais, para a decepção de muitos.
Não foi a única razão para as críticas, teve outros problemas (e coisas que eu não achei que foram problemas e que incomodaram também), mas essa foi uma delas. Durante a série inteira, se especulou que o vilão Mephisto estaria por trás de tudo (teoria que chegou a virar meme), que o Hex da Wanda resultaria na criação dos mutantes, que o engenheiro aeroespacial amigo da Monica era o Reed Richards, do Quarteto Fantástico, que o Doutor Estranho ia aparecer, entre várias outras.
Mas no fim, nenhuma delas se tornou verdade. A vilã era a Agatha Harkness mesmo (e o Hex era coisa só da Wanda), não teve mutante nenhum, a engenheira da Monica era uma figurante aleatória e o Doutor Estranho não apareceu. E então essa foi uma das razões para o final ter sido tão mal recebido quanto foi.
Mas já volto nisso. Daí veio The Falcon and the Winter Soldier. Que, entre várias histórias mal desenvolvidas (cof cof Mercador do Poder cof cof Karli cof cof redenção do John Walker cof cof crítica fajuta ao imperialismo estadunidense), cumpriu bem o que prometeu, que era fazer o Sam se tornar o novo Capitão América.

Era algo que sabíamos que aconteceria desde o final de Avengers: Endgame, quando Steve deu o escudo a ele. Mas durante a série, Sam inicialmente desiste de assumir o manto e doa o escudo para o governo, que acaba escolhendo John Walker – “coincidentemente” um cara branco – para ser o novo Capitão América, daí tem toda uma história de quem vai acabar sendo o novo capitão, e no fim, como todos sabíamos, foi o Sam que ficou com o escudo. O pessoal da série tentou criar um drama de “ah, será mesmo que o Sam vai virar o capitão”, mas todo mundo sabia que ia sim.
De qualquer maneira, o final da série foi decepcionante para muitos também – de novo, não entendi tão bem por quê, porque pra mim foi bem na mesma qualidade do resto da série (o que não é bem um elogio nem uma crítica).
Daí chegou Loki e eu vi muita, muita gente pessimista com relação às séries da Marvel no Disney+. Porque afinal, estamos falando do MCU, em que cada obra se conecta uma com a outra, influencia uma a outra, tudo está conectado, e todas contribuem para a criação de uma história maior. Mas daí, com a criação das séries no Disney+, inicialmente se pensou que elas seriam um produto à parte, como as séries que eram feitas por outros estúdios para o MCU antigamente, mas foi prometido que não, que essas séries novas seriam importantes, tanto quanto os filmes. E o pessoal ficou de boa.
Até que, depois de duas séries lançadas, muitos começaram a duvidar dessa afirmação. Dizendo que era tudo papo pra convencer o público a assistir às séries, porque nada de importante direito tinha acontecido. A Wanda ter virado a Feiticeira Escarlate? Não importa, foi só uma mudança de figurino. O Sam ter virado o Capitão? A gente já sabia que ele ia virar mesmo, não fez diferença. Então se criou um sentimento de que as séries, no final das contas, eram mesmo histórias à parte, que não influenciariam nada no universo, e a partir daí se criou também um desinteresse por elas.
Mas aí chegou Loki, e veio o pessoal da Marvel prometer que essa seria muito mais importante para o MCU do que as outras duas foram, que ela teria ramificações enormes. E logo isso se provou verdade: no último episódio, Sylvie mata Aquele Que Permanece, o que faz com que a linha do tempo passe a se dividir novamente, essencialmente libertando o multiverso, que estava sendo podado pela TVA e que agora, enfim, podia existir livremente.
E isso é importante porque o multiverso deve ser abordado em Spider-Man: No Way Home, em Doctor Strange in the Multiverse of Madness, e em várias outras obras. Então sim, a série teve implicações enormes para o resto do MCU.

Durante a série inclusive, havia especulações fortes de que o grande vilão seria o Kang, um dos principais vilões da Marvel que deve aparecer em Ant-Man and the Wasp: Quantumania, em 2023. Mas muitos rebateram essa teoria, dizendo que nunca iriam introduzir um vilão tão importante em uma série do Disney+, que essas séries não teriam grande relevância. Mas no último episódio, era ele mesmo que estava lá: Kang era o grande vilão e teve uma grande participação no season finale.
E logo que acabou, Loki foi coroada como a melhor série do Disney+, foi ótima, extremamente interessante e o mais importante de tudo, vai ter ramificações enormes no resto do universo Marvel, mudou completamente a continuidade... diferente de WandaVision e The Falcon and the Winter Soldier, que não o fizeram. Que foram fillers.
Então.
Acho que a primeira coisa que eu preciso dizer é que me preocupa um pouco as pessoas chamarem as duas primeiras séries de fillers, e dizer que nada de importante aconteceu nelas. Porque... isso simplesmente não é verdade. Nenhuma das duas abriu o multiverso, mas:
WandaVision introduziu Agatha, Billy, Tommy, a S.W.O.R.D., o Visão Branco, a Monica adulta, revelou mais dos poderes da Wanda, mudou a personagem para sempre, introduziu bruxas no MCU. The Falcon and the Winter Soldier introduziu John Walker, Val, Isaiah Bradley, Eli Bradley, Madripoor, reformulou completamente a Sharon Carter e o Zemo.
Se esse tipo de coisa é filler, o que exatamente esse pessoal quer? Foram séries cheias de personagens novos, com novos elementos que ainda devem ser explorados no MCU. Não muito diferente da grande maioria dos filmes, não é como se Ant-Man and the Wasp ou Black Panther ou Spider-Man: Homecoming tivessem feito mais que isso, e sempre foi normal. Nem todo filme vai ser um Vingadores da vida, se acalmem! A gente não precisa de uma abertura de multiverso pra ter importância.

Esse filme teve alguma implicação grande no universo? Não muito. Certamente não mais do que as séries. Mas ainda assim é um dos meus preferidos do MCU.
E mesmo que não tivesse tido nada disso, mesmo que não tivesse introduzido personagem nenhum, reformulado personagem nenhum, se fosse só uma história bonitinha da Wanda e do Sam... qual exatamente seria o problema?
Porque tirando tudo isso de lado, ainda temos uma linda história da Wanda enfrentando o luto, que aprofunda a personagem de uma maneira impressionante considerando o quão pouco desenvolvida ela era, dando a ela grande complexidade sobre a qual eu também falei aqui.
E uma história do Sam lidando com o racismo que enfrenta ao se tornar o novo Capitão América, junto com o Bucky que precisa aprender a conviver com os erros que foi obrigado a cometer no passado.
Sério, antes dessa série eu não podia ligar menos pro Sam e pro Bucky, dois personagens completamente descartáveis que serviam só de escada pro Steve. Mas agora eles são personagens de verdade! Têm personalidades! Isso é um feito por si só. E a Wanda, que já era minha favorita do MCU, depois de WandaVision se firmou lindamente no primeiro lugar, graças à complexidade que ela ganhou nessa série e a toda a história do luto que ela teve que enfrentar.
Basicamente o que eu estou dizendo é que: não importa se a história não teve ramificações importantes! Não importa se ela não introduziu os mutantes ou não conectou com tal filme! Eu sei que o MCU treinou as pessoas para esperarem sempre as conexões, e eu adoro as conexões também, são parte do por que eu gosto tanto dos filmes e séries, mas no fim das contas, eles ainda são histórias individuais que não merecem ser avaliadas meramente por “mudou o universo ou não”. Elas são mais do que isso, por favor. Se tiverem uma história interessante, com personagens bem desenvolvidos e um bom enredo, qual o problema de não ter mudado o MCU pra sempre? Medir a qualidade das obras por isso é tão injusto e errado pra mim. Nenhuma série devia precisar abrir o multiverso pra não ser considerada “desnecessária” e “desimportante”. Mas aparentemente, precisa.
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